Justiça Federal rejeitou pedido de reintegração de posse movido pelo Estado de Santa Catarina contra a comunidade quilombola; racismo marca a luta pelo território
Reportagem de Rodrigo Barbosa
Há 12 anos na luta pela titulação de seu território, a comunidade quilombola Vidal Martins conquistou uma vitória judicial no último mês: em 18 de agosto, a Justiça Federal rejeitou um pedido de reintegração de posse movido pelo Estado de Santa Catarina contra a comunidade, referente a um terreno que é reconhecido como sendo território tradicional quilombola.
O pedido de reintegração de posse foi feito pelo Instituto do Meio Ambiente (IMA), órgão ligado ao governo do estado que tentava recuperar judicialmente o camping do Parque Estadual do Rio Vermelho (Paerve). O camping é ocupado pela comunidade desde fevereiro de 2020, mesma época no qual o processo havia sido aberto.
Na decisão proferida no último mês, o juiz Marcelo Krás Borges, da 6º Vara de Justiça, definiu a presença da comunidade no local como “retomada do território“. O quilombo voltou para ficar.

A área que estava em disputa
O camping do Parque Estadual do Rio Vermelho encontrava-se abandonado em 2018, quando a comunidade quilombola Vidal Martins pleiteava concorrer à licitação que definiria a nova administração do espaço. A comunidade regularizou uma Organização Social, pré-requisito do edital de concessão para participar do pleito, mas foi impedida pelo IMA – órgão gestor do Paerve.
O IMA foi condenado em 2019 por racismo institucional por conta da exclusão da Associação Quilombola Vidal Martins (Arqvima) do edital aberto pelo Instituto. Àquela altura, a comunidade ainda aguardava a conclusão dos estudos antropológicos e territoriais que definiriam os limites do quilombo. O processo de reconhecimento da comunidade no governo federal foi aberto em 2013.
Em fevereiro de 2020 foi publicado o Relatório Técnico que reconheceu o território quilombola Vidal Martins. Dentro da área de cerca de mil hectares definidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) como sendo território tradicional, encontrava-se o abandonado camping do Paerve. Mais especificamente, o camping foi reconhecido como local onde viveu Vidal Martins, antepassado comum que dá nome à atual comunidade quilombola.
A comunidade, então, decidiu retomar parte de seu território. Em 15 de fevereiro de 2020, fizeram do camping sua nova antiga morada. O IMA pediu reintegração de posse imediatamente.
Daí em diante, foram mais de cinco anos de disputa judicial, em parte travada durante a pandemia, até que houvesse o reconhecimento da Justiça de que o camping do Paerve era, de fato, território quilombola.
O camping do Paerve, entretanto, é apenas parte de uma batalha que dura séculos e abrange uma área tradicional muito maior.

O Quilombo
“Já restou demonstrado que a comunidade ocupava o local há décadas atrás e foi removida do local”.
A decisão proferida pela Justiça Federal no último mês é mais um capítulo de uma história de três séculos de coexistência entre o racismo e a luta do povo preto no Norte da Ilha. O navio negreiro que trouxe os antepassados raptados da comunidade Vidal Martins atracou na Praia dos Ingleses nos anos 1700.
Joana, mãe do homem que viria a dar nome ao Quilombo muitos anos mais tarde, foi escravizada por um senhor de engenho. Em 1850, no final da adolescência, foi vendida para o primeiro pároco da recém-construída Capela de São João Batista do Rio Vermelho.
Vidal Martins tinha 5 anos quando se separou da mãe. Continuou sendo escravizado por Manoel Galego, senhor de engenho que vendeu Joana ao padre. Naquela época, ao menos 300 pessoas escravizadas viviam no Distrito do Rio Vermelho.
Joana e Vidal só ganhariam a liberdade com a morte de seus algozes, na segunda metade dos anos 1800. Seguiram vivendo nas terras de seus antigos senhores. Durante os cem anos seguintes, as famílias descendentes de Vidal Martins fizeram do Rio Vermelho território preto.
“Nossa comunidade tem um vínculo muito grande com a terra porque nossos ancestrais foram escravizados ali, construíram família ali, com a força dos seus braços fizeram casa, roça. Com o suor do seu rosto molhavam a terra, naquelas terras tiveram seus filhos, ali cantamos nossas cantigas, nosso Terno de Reis, ali foram enterradas as placentas e os cordões umbilicais dos nossos ancestrais, ali está os restos mortais deles, foi ali que permaneceram após libertos e constituíram famílias” – Shirlen Vidal de Oliveira, trineta de Vidal Martins
Os Vidal Martins combateram a miséria que prevaleceu entre os descendentes de escravizados através do conhecimento do território e seus recursos. A pesca e a coleta de frutos do mar, fundamentais para a subsistência e economia da comunidade, eram feitas na Lagoa da Conceição e nos mangues da região. As encostas dos morros adjacentes à lagoa eram utilizados para o plantio de pequenas roças de mandioca, milho e banana, muitas vezes de uso comum. A estrutura dos antigos engenhos era utilizada na produção de farinha de mandioca.
Do próprio ecossistema do Norte da Ilha, retiravam bambu, junqueira e madeira para fabricar cestos, balaios e outros artigos de artesanato e carpintaria. As bagas da anoga, uma das árvores da região, eram usadas na produção de sabão. Do butiá, espécie de palmeira, fazia-se cachaça. Uma série de ervas medicinais também eram manejadas pelos quilombolas, que ainda faziam coleta de plantas comestíveis e frutas na região do quilombo.
Sendo as condições de pesca, plantio e extração de recursos afetadas por sazonalidades, o ciclo extrativista dos quilombolas tornou-se itinerante. A liberdade de transitar pelo território foi fator fundamental para a sobrevivência dos Vidal Martins. Os ranchos de Isidro, neto de Vidal Martins e exímio pescador, são evidência disso: estavam distribuídos por vários pontos da orla. As roças de seu irmão Militão ficavam espalhadas da lagoa até onde hoje se encontra o Parque Estadual.
A comercialização de produtos manufaturados, colhidos ou cultivados pela comunidade era feita sobretudo na Barra da Lagoa, a norte do quilombo. Os deslocamentos até o local eram feitos a pé ou de carro de boi em pequenas trilhas que foram sendo abertas pelo território.
Os caminhos entre as casas dentro do quilombo, que ligavam áreas de habitação a áreas de cultivo e extração eram conhecidos por completo apenas pelos membros da comunidade, evidenciando que a área ocupada pelos Vidal Martins foi, por muito tempo, de uso comunitário, mas exclusivo daquele grupo.
“As habitações antigas eram todas de estuque. A primeira casa de Isidro no atual terreno era de estuque, com telha de palha e parede de barro. As camas eram de quatro estacas, com uma esteira de bambu e um colchão de palha de milho. Fogão era feito de pedra, ou cozinhava no chão. Antigamente ninguém tinha banheiro, e água era carregada do rio, esse rio que tinha aqui atrás. Era lavar roupa né, carregar água. A água era carregada num pote de barro, e uns botavam em cima da cabeça e iam segurando com uma mão, ou arrastava nas costa, no ombro” – Olindina Maria da Costa, bisneta de Vidal Martins

Muitas décadas depois do estabelecimento da comunidade Vidal Martins no Rio Vermelho, o Estado brasileiro passou a, lentamente, reconhecer o direito de comunidades quilombolas. Na Constituição de 1988, veio o reconhecimento do direito às terras.
Em 2003, um decreto que estabeleceu uma definição para remanescentes das comunidades de quilombo: “grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
O decreto também definiu territórios quilombolas como “áreas territoriais identificadas pelos grupos negros como experiências específicas consolidadas por meio de vínculos sociais e históricos, e noções de pertencimento e origem comum presumida, convergindo para uma territorialidade expressa como modalidades próprias de organização social, parentesco, sociabilidade e valores culturais materiais e imateriais de um patrimônio reconhecido pela coletividade que a integra”.
Pelas próprias definições do Estado brasileiro, não deveria restar qualquer dúvida quanto à tradicionalidade do território Vidal Martins e, consequentemente, quanto ao direito da comunidade ao território. Mas, em 1988, a comunidade já não estava mais em suas terras. Foram dali expulsos duas décadas antes e, desde então, são impedidos pelo Estado de Santa Catarina de retornarem de maneira plena.
Muitos processos, poucas soluções
“90 dias sem casa é uma década. A situação da comunidade tá precária, a comunidade tá passando por um momento muito difícil. A titulação de nossas terras é tudo pra nós. Desde 2018 já vem sendo discutido no Judiciário o processo de titulação. A gente pede é uma reparação histórica para o Quilombo Vidal Martins” – Helena Vidal, trineta de Vidal Martins

São vários os processos judiciais que hoje contrapõem o Estado de Santa Catarina e a comunidade Vidal Martins. Durante os 12 anos de reivindicação da comunidade, raros foram os momentos em que o Estado se mostrou disposto ao diálogo.
A Ação Civil Pública Nº 5043362-43.2023.4.04.7200 é um destes processos. Tramitando na Justiça Federal desde 2023, o processo foi movido pelo Ministério Público Federal (MPF) e tem como principais réus o IMA e o Estado de Santa Catarina (ao qual o IMA é vinculado). A ação tem o intuito de condenar estes órgãos a realizar a titulação da área identificada pelo Incra – órgão federal.
Da parte do Estado, o principal argumento para se recusar a cumprir suas atribuições legais frente ao direito dos quilombolas é o fato de a área reconhecida como Quilombo Vidal Martins estar inteiramente localizada dentro do Paerve – e, sendo este uma área de preservação integral, não permitiria uma ocupação humana, mesmo que esta ocupação já existisse antes da criação do parque.
A argumentação do Estado ignora que existe, desde 2021, um entendimento por parte da Advocacia Geral da União e do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio – órgão do governo que cuida das áreas protegidas a nível federal) que reconhece a possibilidade de coexistência entre unidades de preservação integral e comunidades tradicionais daquele território. Para isso, as práticas e manejos dos grupos têm de ser incorporados aos Planos de Manejos das Unidades de Conservação. Este entendimento já vem sendo aplicado em outros territórios quilombolas no Brasil, como em Trombetas (PA) e Búzios (RJ).
O Plano de Manejo do Parque Estadual do Rio Vermelho sofreu um enorme atraso para ser elaborado. De acordo com a legislação vigente no país, este deveria ser elaborado em até cinco anos desde a criação da Unidade de Conservação. No caso do Paerve, criado em 2007, o Plano deveria ser finalizado até, no máximo, 2012. Mas não foi o caso.
Em 2019, quando a reivindicação da comunidade Vidal Martins seguia ganhando força, o governo do Estado enfim resolveu encaminhar o processo do Plano de Manejo. Este processo, entretanto, é contestado pela comunidade quilombola e pelo Ministério Público Federal.
Em maio de 2021, uma nova Ação Civil Pública foi aberta pelo MPF no intuito de garantir que a comunidade participasse do processo de elaboração do Plano de Manejo, conforme determina a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a qual o Brasil é signatário. A OIT 169 estabelece que comunidades tradicionais têm direito a consulta prévia, livre e informada sobre medidas que têm capacidade de afetar diretamente o seu território.
A ação em questão ainda não foi definitivamente julgada. O IMA alega que teria incluído a comunidade no processo de discussão. O suposto Plano de Manejo está publicado no site da instituição. No documento em questão, a maior parte das menções à comunidade VIdal Martins são sobre a necessidade de “resolver o conflito” com os quilombolas – e não a de associar suas práticas culturais e de subsistência à preservação da natureza naquele espaço.
O MPF rebate o IMA, relatando, inclusive, dificuldades no acesso à internet por parte da comunidade para participar das reuniões do Conselho do Paerve – parte das quais aconteceram durante a pandemia. O Ministério Público ainda denuncia que a nulidade do plano apresentado pelo IMA é reforçada pela presença de equipamentos de saneamento e lazer privado dentro do Parque, mesmo não havendo zoneamento legal para estes usos.



Dentre as construções relatadas pelo MPF, está um segundo camping que também tem sido alvo de uma disputa judicial. O camping dos escoteiros (este, uma instituição privada) foi ocupado pela comunidade por também estar dentro do perímetro do quilombo. Neste caso, mais especificamente, a área já foi concedida para a comunidade pelo governo federal.
Isto porque a maior parte do camping dos escoteiros encontra-se dentro de uma área de marinha – logo, pertencente à União, e não ao Estado de Santa Catarina. Em outubro de 2024, o Quilombo Vidal Martins recebeu do governo federal um Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) da porção do Paerve cujas terras pertenciam à União. São cerca de 170 dos pouco menos de mil hectares da área total do quilombo. Ainda que não dê a propriedade das terras aos quilombolas, o TAUS permite que a comunidade utilize a área para moradia, atividades tradicionais socioculturais e de subsistência.
Para além de um pedido de reintegração de posse, cuja liminar foi rejeitada pela Justiça, a retomada do camping dos escoteiros apresentou momentos de grande tensão para a comunidade. O trancamento de um portão por parte da instituição privada impossibilitou o atendimento médico a um dos anciãos quilombolas. Mais uma vez, assim como em outros episódios, os Vidal Martins foram vítimas de racismo e intimidações de servidores públicos, incluindo agentes de Segurança Pública.
E a titulação do território?
Com a recusa do Estado de Santa Catarina em conceder ao Quilombo Vidal Martins suas terras, hoje cabe à Justiça Federal determinar a definição do caso. Neste contexto de indefinição, foram várias as audiências de conciliação realizadas. Em uma delas, em julho de 2024, o juiz do caso destacou que a resistência de IMA e governo de Santa Catarina frente ao pleito quilombola colocava a vida de seus moradores em risco, impondo sofrimento à comunidade, que poderia “sofrer muitos anos com o prolongamento do processo”.
Por conta disso, ele determinou a possibilidade da construção de casas em áreas próximas ao camping do Paerve, desde que estas não afetem o meio ambiente do local. Assim como o TAUS do governo federal e a rejeição aos pedidos de reintegração de posse por parte da Justiça, esta foi mais uma das vitórias parciais que a comunidade Vidal Martins obteve durante o processo.
Mas as áreas dos dois campings atualmente ocupados pela comunidade não representam sequer 20% da área efetivamente correspondente ao Quilombo Vidal Martins. A falta de acesso ao território como um todo, somada à incerteza jurídica acerca das áreas já ocupadas, uma vez que estas ainda são objetos de disputas judiciais, faz com que a comunidade ainda não consiga usufruir de seu território tradicional.
A Ação Civil Pública que requer a titulação da área completa corria em ritmo lento desde fevereiro de 2025. Foi quando ocorreu a última audiência de conciliação entre Estado, MPF e comunidade, na Justiça Federal. Como em praticamente todas as audiências dos diversos processos nos quais o Quilombo reivindica seus direitos, não houve conciliação. A falta de novas movimentações jurídicas no primeiro semestre levou a comunidade a movimentar-se.






Em 2 de julho e 7 de agosto, lideranças quilombolas e apoiadores da comunidade estiveram na sede da Justiça Federal para cobrar a titulação do território. Em ambos casos, conseguiram dialogar com representantes do judiciário para mostrar a importância de que o pleito do Vidal Martins fosse recolocado em discussão. A derrota do Estado no pedido de reintegração de posse do Paerve ocorreu após a cobrança da comunidade.
Houve movimentação também no processo de titulação, cuja sentença tem poder de definir de vez a disputa em favor dos Vidal Martins. Em 17 de agosto, um despacho do juiz Marcelo Krás Borges rejeitou todas as contestações preliminares apresentadas pelo IMA e o processo encaminhou-se para sua fase de instrução – fase anterior ao julgamento, onde é feita coleta de provas e depoimentos.
“O que eles vêem como baderna, não é baderna. Esses atos que a gente faz é pra dizer que as coisas no Quilombo não estão acontecendo e que existe desigualdade. Se tem desigualdade, a gente faz ato” – Helena Vidal, trineta de Vidal Martins
