Barbeiro dos crias e pai de família: a história de Danilo, morto pela polícia com um tiro no coração no Morro da Costeira

Jovem de 19 anos, morto pelo 4º Batalhão em 22 de agosto, era pai de duas garotas e tinha sua própria barbearia há dois anos

Reportagem de Rodrigo Barbosa

Loiro pivete, vermelho Oruam, cabelo de oncinha. A estética de um jovem de quebrada começa pela cabeça. Inspirados no estilo de MCs e jogadores, a juventude periférica tem nos cortes de cabelo uma ferramenta para reafirmar sua identidade e enfrentar preconceitos. 

Para além da estética, a barbearia ainda é, para esses mesmos jovens, uma alternativa de futuro. Longe do apelo público dos palcos e estádios de futebol, os barbeiros de quebrada se tornam referência para os crias e constroem suas carreiras deixando a molecada na régua.

Nas quebradas da Ilha da Magia, o fenômeno se repete. No Morro da Costeira, favela da região sul de Florianópolis, um jovem de 19 anos vinha se destacando na cena dos cortes. 

O cara cortava muito, mano. E não era só o corte, era o jeito que ele te tratava, a recepção antes do corte. Porra, um dos melhores barbeiros da Costeira mesmo“.

Danilo abriu sua própria barbearia em 2023. Barbeiro de vários dos crias da comunidade, sustentava suas duas filhas através de platinados, riscos e degradês. Vinha prosperando na carreira que foi seu sonho de infância. Até 22 de agosto de 2025: a noite em que a Polícia Militar de Santa Catarina executou o barbeiro dos crias da Costeira.

Nome de Danilo segue estampado na bancada da barbearia. Foto: Rodrigo Barbosa

Skate e pipas

Antônio Danilo da Silva Xavier era uma criança de cinco anos quando sua família deixou a pequena cidade de Orós, no interior do Ceará, com destino a Florianópolis. Estabeleceram-se no Morro da Costeira, quebrada da região sul da cidade, conhecida por uma enorme pista de skate que fica aos pés da comunidade. 

Foi naquela pista que Danilo passou boa parte da infância. Sua família chegou a Floripa na mesma época em que foi fundada a Associação de Skatistas da Costeira do Pirajubaé (Ascop). A Ascop oferece aulas de skate a jovens do morro desde 2009 – Danilo fez parte de uma das primeiras gerações formadas pela associação. 

Eu lembro dele pequenininho lá na escolinha, ele sempre foi suave. Ninguém entendeu a morte dele”, lembra um skatista da Costeira.

Anos antes de começar a riscar cabelos, o garoto Danilo riscava os céus. Soltava pipa como poucos no bairro. “Chegava final de semana, ele ficava o dia todo na pipa. Quando começava a escurecer, ele trazia as pipas tudo pra mim aqui, ele vendia as pipas pra mim. Eu escolhia as melhores, as que eu gostava, e dava o dinheiro pra ele”, conta um comerciante da comunidade. 

O dinheiro da venda das pipas era investido em picolés, paçocas e chup-chups, os quais o jovem vendia no asfalto e na comunidade. Correria desde cedo. 

Com 13 anos de idade, o menino recebeu um presente que mudou sua vida. Ao brincar com as máquinas de uma barbearia que funcionava aos pés do morro durante sua infância, foi informado pelo dono do estabelecimento que poderia ficar com uma delas. Danilo sempre havia dito a pessoas próximas que queria trabalhar como barbeiro quando crescesse. O sonho começava ali.

Os primeiros riscos

Com a primeira máquina em mãos, Danilo se inspirava em vídeos de internet para fazer os primeiros testes em cabelos de amigos da comunidade. Ainda inseguro, mandava fotos de cada corte para o barbeiro que o havia presenteado com a máquina – que, além de conselhos, também dava aulas presenciais ao jovem. 

Na adolescência, Danilo começou a namorar. Conheceu a futura esposa em um shopping, para onde costumava ir – sempre com o cabelo na régua, trajado com camisa branca da Lacoste, correntes douradas e uma bag por cima do ombro. 

O pedido de namoro, ajoelhado aos pés da sogra, foi feito uma semana após conhecer a esposa, com quem viveu durante os três últimos anos de sua vida na casa que pertencia à mãe – que construiu uma nova casa para si no andar de cima. Poucos meses depois do início do namoro, a notícia da primeira gravidez. Danilo, que até então ajudava na renda da família fazendo bicos, precisou correr atrás de um trabalho fixo. 

Começou trabalhando como servente de pedreiro em canteiros de obra em Jurerê, bairro de classe alta no norte da Ilha, a mais de 30 quilômetros de distância de casa. Acordava às 04h da manhã, saía de casa antes das 06h e só voltava para a Costeira mais de 12 horas depois. O corre na construção civil não durou muito.

Ele passava em frente daquela barbearia Evolution e falava que um dia ia ter uma barbearia”. Em janeiro de 2021, quando ainda era um adolescente de 15 anos de idade, Danilo concluiu um curso de barbeiro. O primeiro emprego no ramo foi numa pequena barbearia que funcionava na parte mais alta da comunidade. 

Pouco tempo depois, foi chamado para trabalhar na rede da maior barbearia da Costeira, a Evolution, que sempre fez seus olhos brilharem. Porém, Danilo foi realocado para a unidade no bairro do Campeche, mais ao sul da ilha. Ainda menor de idade, dependia do caótico transporte público de Florianópolis para ir e voltar do trabalho todos os dias. 

Ele chegava na Costeira e falava que ele não queria aquilo, que ele queria uma coisa pra ele”. Foi o que ele fez.

O barbeiro dos crias

Ele conhecia a gurizada toda da pista e começou a fazer os cabelo dos moleque colorido, fazer uns amarelinho na molecada do morro. Corte de cria”.

O ponto escolhido por Danilo para concretizar seu sonho de infância ficava a 10 minutos de casa, morro abaixo. Mais especificamente, em frente à pista onde cresceu fazendo manobras e no mesmo conjunto de lojas onde funcionava a barbearia que ele frequentou na infância – àquela altura já fechada. De cliente, virou proprietário.

As compras dos equipamentos e a instalação do papel de parede autocolante, que ainda segue atrás dos espelhos da barbearia, foram todas feitas em um dia só – por Danilo e pela esposa, que na época estava grávida da primeira filha do casal. 

Logo de cara, o negócio deu mais certo do que o imaginado. A amizade de Danilo com os crias do bairro, com os quais cresceu nos becos da comunidade e na pista de skate, tornou a Barbearia Costeira um sucesso instantâneo. A alegria de Danilo com o primeiro dia de trabalho em seu próprio negócio ficou registrada em um áudio guardado com carinho por um de seus amigos: 

Porra, tô feliz pra caralho, cortei cabelo pra caralho! Fiz 277 reais só de cabelo. Pensa na felicidade quando eu fui vendo chegando gente, chegando gente… Dá um ânimo do caralho pra seguir em frente, né, feio? Eu achei que não ia dar certo e deu certo”.

A especialidade dele, segundo os amigos, era o “corte do Jaca”: corte curto com fade lateral, realizado por Danilo em tempo recorde. Mas o barbeiro também expressava seu trabalho nos riscados, platinados e pigmentados. Sua arte segue exposta no perfil que ele utilizava no instagram.

Durante os dois anos de funcionamento da Barbearia Costeira, várias mudanças foram realizadas por Danilo no espaço. Da pintura da parede aos pôsteres colados pelo local, tudo foi pensado por ele. Aos poucos, o barbeiro foi dando sua cara à barbearia. “Ele que arrumou tudo. Aqui atrás era tudo branco, ele fez os desenhos aí. Veio de manhã cedo e fez esses desenhos. Era ele sozinho no começo e ele foi se erguendo”. 

Estabelecido como barbeiro referência da comunidade, era hora de ampliar o negócio. Fez um convite ao barbeiro que o atendia na infância para que este retornasse à Costeira para trabalhar no novo espaço. Foi o que aconteceu. Anos depois de presentear Danilo com sua primeira máquina e aulas de barbearia, mestre e aprendiz começaram a trabalhar lado a lado. 

Para além dos cortes, a barbearia também era espaço de resenha. Danilo atraía clientes por ser bem humorado e sonhador. 

Inventava umas história da cabeça dele. Mas era tudo história que ele queria realizar, só que ainda não tinha realizado. Ele tava falando que aconteceu, mas ele queria que acontecesse. Alguém parava moto aí, todo mundo que chegava depois aqui ele ficava: ‘Olha ali, eu comprei minha moto!’ [risos] Pra todo mundo, tá ligado? Era o sonho dele ter uma moto, mas ele tava na autoescola ainda”.

Pai de família

Tava sempre aí mandando dinheiro pra família. Tava precisando de um leite, ele já mandava o Pix. O Danilo era uma pessoa até difícil de explicar o coração que tinha. Ele tava sempre preocupado em ajudar, não media esforços”.

A rotina de trabalho na Barbearia Costeira é intensa. Nos fins de semana, até 30 clientes são atendidos por cada barbeiro em um único dia. Clientes e amigos de Danilo relatam que, enquanto houvesse gente para cortar o cabelo ou fazer a barba, o jovem seguia na correria. Nas sextas e sábados, o estabelecimento ficava aberto por mais de doze horas seguidas, sendo fechado às dez ou onze horas da noite. 

Ao ser assassinado, Danilo deixou duas filhas – uma de nove meses e outra de dois anos e meio de idade. No meio do expediente, quando a saudade batia nas pequenas, o jeito era descer o morro para ver o pai. “Ele era muito apegado nelas. Às vezes, ele chegava atrasado porque ele falava que queria tomar um café e elas não tinham acordado ainda. Elas passavam aí direto, entravam na barbearia, ele dava um dinheiro pra comprar um lanche, umas balas… Era direto, direto”.

Pessoas que conviveram com Danilo lembram que a filha mais velha era especialmente ligada a ele e costumava insistir para ficar na barbearia – pedido que costumava ser rejeitado pela mãe, visando que o pai pudesse focar no trabalho. A solução era esperar a noite para encontrar seu ídolo: 

Ela escutava o barulho da chave dele, porque ele subia com a chave no dedo. Ela escutava e já se escondia. Quando ele abria a porta, a primeira coisa que ela falava era: ‘Meu pai chegou!’ E ela perguntava pra ele se ele tinha trazido presente, porque ele sempre passava no posto e comprava alguma coisa”.

A última lembrança que a filha mais velha guardará do pai é de os dois estarem brincando numa noite de sexta-feira. Quando saiu de casa, na noite em que foi morto pelo Estado, Danilo havia acabado de colocar a filha para dormir. 

O último corte

Foi uma coisa do nada, ninguém jamais esperaria que aconteceria isso com o Danilo. Foi uma surpresa pra todo mundo aqui na Costeira. Até quem não conhecia ele, que só via e passava na frente da barbearia, sabia quem ele era. Chocou todo mundo”.

O último corte da vida de Danilo não foi feito por ele. Na sexta-feira, 22 de agosto de 2025, teve o cabelo cortado por volta das 21h20 por seu parceiro de trabalho, que deixou a loja logo em seguida. 

Danilo permaneceu na barbearia arrumando o espaço. No dia seguinte, sábado, a Barbearia Costeira teria três barbeiros trabalhando ao mesmo tempo pela primeira vez. A prosperidade do corre de Danilo fez com que um terceiro profissional fosse empregado no local. 

Mesmo após sua morte, a empolgação de Danilo com o sucesso do negócio e com a nova contratação está estampada no instagram da barbearia: “Contamos com uma equipe top: 3 barbeiros prontos pra te atender com estilo e qualidade! Te espero lá”!

Danilo mudou a bio do perfil da barbearia na sexta-feira, mas nunca chegou a trabalhar com seu novo parceiro de trampo – contratado no último dia da vida do chefe. Após arrumar sua bancada e a de seus empregados, Danilo subiu o morro pouco depois das 22h e nunca mais retornou à barbearia.

Fez uma parada em casa. Tomou banho, brincou com a filha e a colocou para dormir. Foi encontrar-se com amigos para o rolê de sexta à noite quando descobriu que um desentendimento entre vizinhos havia acabado de acontecer na Costeira. Foi buscar ajuda. 

O guri não fazia mal pra ninguém, ele fugia de briga pô, de discussão…”

Na correria para tentar acalmar a situação, entrou em um Ford Ka branco. Foi a última decisão da vida de Danilo. Àquela altura, a polícia também já havia sido acionada. Levariam ainda mais violência à comunidade – desta vez, com armas de fogo. Ao cruzarem com o carro onde estava Danilo, por volta da meia noite, dispararam. 

Tem um carro parado aqui na frente de casa e a polícia tá atirando”.

Da minha casa eu ouvi os tiros, peguei meus cachorros e coloquei aqui pra frente. Muito tiro, pra mais de dez”.

A polícia afirma que, ao ir atender o chamado na Costeira, se deparou com um carro em alta velocidade. Uma perseguição iniciou-se até um beco da comunidade, onde o carro colidiu com um muro.  À nossa reportagem, a corporação afirmou que ambos ocupantes do Ford Ka teriam atirado contra a guarnição, incluindo Danilo. Entretanto, apenas uma arma (uma pistola .45mm) foi apreendida durante a operação. 

A corporação relatou a outros veículos da mídia comercial que o motorista do veículo saiu do carro após a colisão, sendo alvejado e morto neste momento. Isto porque ele teria feito “menção de atentar” contra a viatura – portanto, não tendo atirado contra os policiais neste momento. Não foi relatada a apreensão de nenhuma munição de pistola .45mm deflagrada naquela noite. 

Danilo nunca saiu do carro depois que este começou a ser alvejado pelos policiais. No banco do carona, já havia sido atingido por tiros no coração e no pulmão quando o carro bateu no muro. Morreu ali mesmo, desarmado.

Comunidade em choque

Todo mundo quer mostrar serviço no primeiro dia de trabalho. O novo contratado da Barbearia Costeira chegou à loja nas primeiras horas da manhã de sábado, 23 de agosto, e começou a cortar o cabelo de um cliente como se nada tivesse acontecido. Ouviu boatos sobre a noite anterior, mas não tinha motivos para se preocupar com o chefe – que, em seus 19 anos de vida, nunca se envolveu com nada de ilegal. Não imaginou que Danilo poderia estar entre os corpos que a polícia havia deixado no chão.

Recebeu a notícia do outro companheiro de trabalho que, ao acordar, também não acreditou na notícia – mesmo que o celular tivesse mais de 30 ligações não atendidas durante a madrugada. “Porra, vai ficar brincando com essas coisas a essa hora da manhã?” 

O impacto da notícia se espalhou por toda a Costeira. “Eu acordei e a primeira coisa que eu fiz foi ir na padaria. Voltei e a barbearia tava fechada. Até aí beleza. Mas olhei e tinha uma plaquinha. Luto. Aí que eu comecei a ligar toda a cena, me deu um choque na hora. Eu passo aqui todo dia, tá ligado? E ele sempre tava ali trabalhando”, conta um cliente. 

Cartaz homenageando Danilo nos comércios da Costeira após sua morte. Foto: Rodrigo Barbosa

A esposa do barbeiro encontrava-se no hospital quando tudo aconteceu. Teve que interromper a recuperação de uma cirurgia para comparecer ao velório do marido, também sem acreditar que aquilo havia ocorrido. 

A reação mais natural à morte de Danilo partiu da filha mais velha, sua fiel escudeira: “No céu, mamãe? Mas ele não vai cair?”

A Barbearia Costeira ficaria fechada por três dias. Na terça-feira (26), reabriu sem a mesma energia. “A alegria da barbearia sumiu. Era um guri divertido, cheio de sonho. O bicho vivia e respirava a barbearia”. 

O plano dos amigos é homenagear Danilo com uma foto no local que ele construiu através de seu próprio suor. “E é isso aí mano, a barbearia aqui vai continuar e vai fortalecer, honrar o legado”.

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