O amanhã que não chegou: Jovem negro de 16 anos é morto pela PM dentro do próprio quarto no Monte Cristo

No mesmo dia, jovem negro de 27 anos também foi morto com um tiro de fuzil na cabeça, durante protesto

Reportagem de Gabriele Oliveira e Rodrigo Barbosa

“É necessário sempre acreditar que o sonho é possível

Que o céu é o limite e você, truta, é imbatível

Que o tempo ruim vai passar, é só uma fase

Que o sofrimento alimenta mais a sua coragem”

Nas paredes do seu quarto, Diego colecionava fragmentos de sonhos. Acima da cama, um mural com fotos da mãe e da infância. Um cartaz com a oração do Pai Nosso. Atrás da porta, um certificado de participação na rádio comunitária do Centro de Educação Popular (CEDEP) ficava pendurado, como um prêmio. Diego frequentou aquele projeto por quase 10 anos – em especial, as quadras de futsal. 

Em cima da porta, uma cola da tabuada. Do outro lado do quarto, um prego na parede segurava duas guias. Próximo delas, um amontoado de medalhas registrava o seu gosto por esportes. Nessa mesma parede, fragmentos de projéteis sinalizavam a interrupção de todos esses sonhos. Naquela manhã, o Monte Cristo perdeu um de seus imbatíveis.

Na cômoda, sinais do último lugar que Diego tocou antes de ser morto. No chão, manchas de sangue se misturavam à madeira avermelhada. Pela força da mão armada do Estado, a morte invadiu o quarto – e tomou conta de seu mural de sonhos. 

Cria do Pastuga

Diego nasceu e cresceu nos estreitos becos do Pasto do Gado. O Pastuga, como o território é conhecido por seus moradores, é uma das 13 comunidades do Complexo do Monte Cristo – maior aglomerado de favelas da região continental de Florianópolis.

Por ali, Diego viveria os 16 anos de sua vida, sempre sendo um dos menores garotos de sua turma de amigos. “Ele era um cabritinho“, lembra um familiar. Cresceu na companhia da mãe e dos avós maternos em uma pequena casinha de madeira. Pouco teve contato com o pai durante a infância. Sua curta trajetória de vida é o retrato de um território inteiro.

O principal espaço de convivência do Pastuga é uma pequena praça localizada na entrada da favela – cuja estrutura nos lembra que o Estado nunca olhou com carinho para a juventude daquele território. 

Durante a infância de Diego, o parquinho do local pouco oferecia às crianças. Houve uma época, por exemplo, que o único espaço público de lazer para os crias do Pastuga não era sequer cercado. O parquinho contava apenas com três gangorras velhas e quatro pneus enterrados no chão de areia. 

Sem a presença paterna, todo mundo tentou assumir parte da responsabilidade em ser o pai de Diego. O avô, por exemplo, era quem levava o garoto para passear em seus primeiros anos de vida. Diego se animava quando ouvia do coroa que o passeio do dia seria na Praça Nossa Senhora de Fátima, a “Praça da Koerich”. 

Localizada em uma área de classe média-alta do bairro do Estreito, a Praça da Koerich é chamada assim por conta da loja de departamentos de mesmo nome que fica logo ali na esquina. Desde 2021, cabe inclusive à própria empresa a manutenção da praça. Diego frequentava o local no começo dos anos 2010, quando a prefeitura ainda era a responsável pelo espaço. 

Já nessa época, a realidade por ali era muito diferente do Pastuga. A praça é 45 vezes maior que a pracinha da quebrada onde Diego cresceu. Além de um parquinho com muitos brinquedos, estes costumavam estar com a manutenção em dia. A Praça da Koerich, arborizada e pavimentada, ainda conta com academia, uma quadra e um campinho de futebol. 

Após o menino “balançar a praça inteira“, o passeio sempre terminava no bar. Ir ao asfalto com o avô significava lanchar coxinha com Coca-Cola. A última mordida sempre vinha acompanhada da mesma frase: “Ô meu Deus, agora eu tô satisfeito!

Já nessa época, Diego tinha no futebol sua atividade favorita e seu grande sonho para o futuro. Seu contato com o esporte iniciou-se nos becos e no campinho de sua comunidade, mas se aprofundou quando ele entrou no Centro de Educação Popular (CEDEP) – organização da sociedade civil que atende os crias do Monte Cristo no contraturno escolar. 

Diego começou a frequentar a Instituição aos seis anos de idade. Baixinho e veloz, jogava como ala e fazia parte da equipe de futsal da instituição. Apesar da habilidade, o sucesso com a bola nos pés não veio logo de cara. 

No começo ele ficava muito nervoso, quando ele era pequeno. Eu levava ele pras partidas e ele não entrava tanto, ficava mais no banco mesmo. Teve jogos de competição que eu levei ele e ele acabou nem entrando“, lembra um ex-treinador. 

Mas o garoto não abaixava a cabeça. Ia ao treino religiosamente três vezes por semana. Diego amava o esporte, mas não foi só pelo amor que ele se manteve nas quadras. Seu delicado contexto socioeconômico sempre foi fator de preocupação para professores e treinadores – o que também influenciou para que ele continuasse praticando futebol. 

Ele foi criado pelo avô, que deu todo suporte que podia dar, mas sempre teve muitas dificuldades. Eu sentia essa necessidade de ter o Diego por perto“. 

O esporte, para além da perspectiva de futuro, era um espaço de acolhimento para o garoto. E acolher foi o verbo necessário para que o talento criasse confiança em quadra. Ele, então, deslanchou. 

Conforme ele foi crescendo, ele foi conseguindo lidar melhor com o nervosismo dentro de quadra, aí ele começou a jogar os jogos“. Pouco adiante, começaria também a andar de skate e praticar artes marciais. O menino estava crescendo.

As medalhas conquistadas por Diego. Foto: Rodrigo Barbosa

A vida é desafio

A passagem da infância para a adolescência é o período mais delicado da vida de um jovem negro periférico. Para muitos deles, campos de futebol, pistas de skate e linhas de pipas vão, aos poucos, dando espaço ao trabalho. Já não sobra muito tempo para sonhar. 

Aos 14 anos, Diego trabalhava vendendo refrigerante e água na Praia do Campeche, no Sul da Ilha – acompanhado por uma amiga de sua mãe. Uma, entre muitas das pessoas que tentaram ser rede de apoio para o menino.

Ele ia, mano! Ele é carudo, cara. Ia de mesinha em mesinha: ‘Ô, compra uma água, compra uma Coca. Eu tô trabalhando, não sei o quê’. E o pessoal comprava”.

Porém, nessa mesma fase, outro tipo de comércio acabou também entrando na vida de Diego. “No começo era essa relação de apologia mais, sabe? De falar de algo que talvez ele nem conhecesse direito, de reproduzir muito isso”. Por vezes, é com a biqueira que os campos de futebol competem pelo tempo dos jovens de quebrada. 

Com suporte de seus educadores, Diego seguiu persistindo na construção de outro caminho – apesar de recorrentes atritos, continuava nas quadras e nas salas do CEDEP. Em 2023, participou de um projeto em especial, que pareceu motivar novamente o jovem: a rádio comunitária. 

O podcast do CEDEP, feito com auxílio dos oficineiros da graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, proporciona um intercâmbio de conhecimentos entre educandos da instituição e estudantes da Universidade.

Quando conviveu com Diego durante as oficinas de jornalismo comunitário, um dos oficineiros notava uma inquietação nos seus olhos. O comportamento agitado de Diego, muitas vezes, dificultava sua relação com os colegas do projeto. Era como se o menino vivesse em outra frequência. 

“Ele aprontava bastante. Não por maldade, mas porque ele queria um pouco de atenção. Coisa comum de adolescente que está se sentindo excluído”.

O rap sempre fez parte da vida de Diego – seja cantando ou ouvindo. E, no fim, a música acabaria sendo a ponte que permitiu a aproximação entre o estudante universitário e o educando do CEDEP. Sozinho em um dos computadores do projeto, Diego se concentrava em ritmo e melodia. 

“Ele estava escutando uma música do MC Cabelinho. Não lembro qual, mas falava muito sobre tráfico. E eu já sabia desse envolvimento inicial dele com o movimento. Aí eu chamei ele e falei: cara, escuta essa música aqui! Coloquei ‘A vida é desafio’. Primeiro ele curtiu. Ouviu quase tudo, bem atento. Aí os moleques chamaram ele pra jogar. Então ele largou – e disse que Racionais era coisa de velho.”

Apesar da inicial rejeição, a ponte já estava feita. A troca entre gerações relembrou Diego que o sonho era possível. O adolescente topou rimar para um episódio do podcast. Escolheu Céu de Pipa, funk paulista do MC Marks que incentiva os crias de quebrada a cantar pelos sonhos da favela. 

Confiante após a primeira gravação, Diego estava pronto para um feat. Combinou com o oficineiro que, ao fim das atividades na rádio comunitária, gravariam um episódio extra do podcast. Juntos, cantariam Negro Drama

A gravação do episódio extra não chegou a acontecer. Foi nessa época, aos 14 anos, que Diego perdeu a mãe – vítima de um atropelamento no bairro do Abraão. A vida do jovem, que nunca conheceu a tranquilidade, se tornou um desafio ainda maior. As memórias do resgate da mãe, presenciado por ele, o acompanhariam pelos anos seguintes.

O avô, que sempre assumiu o papel de pai, precisou ser âncora para toda uma família. Pouco tempo depois, sua esposa, avó de Diego, iniciou um tratamento contra o câncer. Agora o avô-âncora, ao mesmo tempo em que tentava cuidar do neto, precisava acompanhar a esposa ao hospital, para tratamento oncológico, pelo menos três vezes por semana. 

Foi o período em que Diego se afastou da escola e do CEDEP. A perda da mãe, agora somada ao medo de perder a avó, fizeram com que o jovem deixasse de lado seu mural de sonhos. Aqueles que já cercavam sua vida desde o nascimento, assumiram, então, uma centralidade em sua vida. 

“Então o Diego teve que se cuidar sozinho. Começa a faltar aula, faltar escola. E começa a ser acolhido em outros espaços. [São] pessoas que estão atuando num grupo, têm suas afinidades, seus acolhimentos. São adolescentes que se conhecem desde criança. Quando a gente escuta falar ‘o tráfico de drogas’, a gente tá falando de amigos que estão na mesma vida há muito tempo”.

Para quem vive fora das comunidades, “traficante” é um sujeito sem rosto e sem história, cujas ações colocam em risco a sociedade. Dentro do contexto da periferia, a pessoa que trabalha na biqueira tem família, tem laços e relações. É mais um entre tantos outros moradores – que fazem parte de um ecossistema que se constroi na ausência do Poder Público. 

Para cada cria da comunidade, o corre, o fluxo, o movimento sempre fez parte do cotidiano – ao contrário do Estado. Neste contexto, corpos como os de Diego são criminalizados muito antes de cometerem crimes. 

Muito trabalho é feito para mostrar que existe um outro caminho possível. No CEDEP, por exemplo, educadores oferecem aulas diversas, como dança, arte, esportes, informática, além de acolhimento com psicóloga e assistente social. Tudo isso para atuar nessa ausência e tentar construir, com as crianças e adolescentes, um futuro onde mudanças são possíveis. 

Mas em um contexto de completo abandono estatal, manter essa esperança viva é um desafio diário. Diante das perdas e incertezas da vida, Diego não conseguiu mais sonhar. 

“São mudanças que não acontecem. Eles não veem acontecer. Falta política pública para atender a demanda de vulnerabilidade. De comer, de pagar água, de pagar luz, de se pagar a vida. E, em algum momento, o Diego desistiu de querer estar nos espaços onde contaram pra ele que podia ser diferente. Que que adianta falarem que existe uma outra realidade se todos os dias eu passo pela mesma e as coisas não mudam?”. 

Para o Estado, é o contexto perfeito para que mais violência seja levada à periferia. Ainda muito jovem, Diego começou a conviver com agressões e ameaças. Não era incomum ver o adolescente mancando ou ferido após ter sido vítima de algum episódio de violência policial. “Já falaram que iam matar, perseguiam ele”.

Uma das agressões mais recentes aconteceu dentro de seu quarto – espaço que, cerca de cinco meses depois, viraria seu leito de morte. “Deram uma pancada de arma ali no travesseiro dele”. No episódio, a janela que fica logo acima da cama do adolescente estava aberta. Sem perceber a aproximação dos policiais, ele foi surpreendido com uma coronhada. 

Diego passou a evitar andar sozinho. Tinha medo – e não sem motivo. Pouco tempo depois, quando andava pela rua, Diego foi abordado por policiais e mais uma vez agredido. “Pegaram o Diego e bateram um monte nele. Aí um outro dia ele tava passando e os caras bem assim: ‘Tu gostou de apanhar da gente’”?

Aquela foi uma das últimas ameaças. Evitar as ruas não o protegeu – de botina, farda e fuzil, a morte veio até seu encontro.   

O amanhã que não chegou

Na noite anterior à sua morte, Diego provou que a insegurança de seu começo de carreira de atleta havia ido embora de vez. Transformou uma pelada em final de Copa do Mundo. “Parece que ele tava sentindo alguma coisa. Porque ele chamou todos os guris do Pastuga pra ver ele jogar. Ele nunca fazia isso“.

Ao chegar em casa, depois da pelada, pediu uma Coca-Cola ao avô. Mas eram 21h30 e o mercadinho já havia fechado. 

O vô compra amanhã de manhã pra ti tomar“. 

Então tá bom“.

Diego fechou a porta do quarto logo em seguida e foi se deitar. Um diálogo qualquer, numa noite qualquer, se transformou nas últimas palavras que ele disse a seu avô. 

Eram cerca de seis da manhã de 26 de setembro de 2025 quando o barulhento portão de ferro da casa de Diego rangeu. Nada de incomum. Vez ou outra, uma amiga da família passa por ali naquele horário. 

Mas o jovem, então, ouviu as botas. Ele conhecia aqueles passos. Com medo, aproximou-se da porta de seu quarto.

Vó?

Sem resposta. 

O silêncio duraria alguns poucos segundos. Quase no mesmo momento em que a avó se levantava da cama e Diego abria a tranca de seu quarto, um chute rachou no meio a porta de entrada da pequena casinha de madeira. A polícia havia chegado.

“Quando nós levantou, os homem já tava aqui. Quando a gente foi abrir a porta, eles já tavam aqui dentro”.

A porta de entrada da casa no dia do crime. Foto: Rodrigo Barbosa

Imediatamente, os moradores da casa começaram a gritar – com exceção de Diego, que ficou parado na porta de seu quarto. “Ele não teve reação. Ele ia falar alguma coisa, mas ele travou na hora”. 

Um dos policiais segurou a avó do adolescente que, prevendo o que iria acontecer, tentou correr para se colocar à frente do jovem. Olhos azuis e a ponta de um fuzil 556 caminharam rapidamente na direção de Diego, que pensou que seria preso. 

Ele tava sem camisa, ele queria pegar uma camiseta porque ele achou que ia pra Delegacia. Quando ele virou as costas, eles pegaram e atiraram nele com aquela arma comprida”.

Atingido a não mais de cinco metros por dois tiros de fuzil, o pequeno corpo de Diego foi ao chão de imediato. Sua cabeça bateu em uma cômoda branca. Enquanto o sangue tomava conta do quarto, o pânico tomou conta da casa. 

Para a polícia, sem tempo para lamento. Em meio à dor dos familiares, agentes de segurança se cumprimentavam. Quase imediatamente após os tiros, avó, avô e namorada de Diego foram expulsos do local e fotografados pelos policiais. A PM ficou, então, sozinha dentro da cena do crime.

Aos moradores e familiares que cobravam respostas na rua, o retorno era sempre o mesmo: o SAMU já estaria a caminho. Mas a comunidade já sentia que a espera pela ambulância era em vão. “Ele ia morrer já, não ia dar tempo do SAMU levar”. 

Um policial, então, saiu da casa e dirigiu-se a um familiar, mostrando uma foto tirada pela guarnição da PM. Na foto, sobre o chão de madeira agora completamente tingido de vermelho, a mão sem vida do jovem negro segurava uma pistola. “Foram lá, pegaram uma arma e colocaram na mão dele. Tiraram foto da mão dele. Mas ele não tinha arma em casa, eu falei isso pra polícia”! 

O corpo de Diego deixou a comunidade sob forte escolta. Quatro policiais civis carregavam a maca, rodeados de cerca de uma dezena de policiais militares. Todos os PMs que aparecem nos registros deste momento estavam com os rostos cobertos e apontavam fuzis para a população, que chorava.

O avô do garoto caminhava atrás do batalhão, escorado em outros dois moradores. Não tinha forças para caminhar sozinho. Momentos mais tarde, encontrava-se ajoelhado na poça de sangue que marcava o local onde o neto respirou pela última vez. “Ele tava muito mal. Se ajoelhou lá no sangue e pra nós tirar deu trabalho”, lembra um morador. 

As mãos trêmulas de quem ainda não acreditava no que havia acontecido. Foto: Rodrigo Barbosa

É comum que moradoras do território, ainda em meio à dor, façam a limpeza da cena do crime quando o local é liberado. A ação é parte do acolhimento da comunidade com a família enlutada, um ato desesperado para interromper o contato com a morte. Naquela manhã, segundo testemunhas, policiais teriam inicialmente tentado impedir que as moradoras limpassem o quarto de Diego. Mas a limpeza acabou acontecendo. “Tá maluco? Vamos deixar o sangue aqui?

A violência sofrida pelo adolescente foi tão grande que o trabalho emergencial de limpeza não deu conta de esconder os seus rastros. A poça foi limpa, mas manchas e respingos vermelhos continuavam por todos os cantos do quarto: na cama de Diego, em uma Havaianas branca, na toalha da mesa ao lado da janela, no puxador da gaveta da cômoda, em uma almofada posicionada do outro lado do quarto. O sangue persistia, escorrendo para baixo do móvel. 

A fina cortina amarela que fica do lado oposto à porta de entrada do quarto tinha furos que indicavam o caminho dos projéteis de fuzil. “Se atravessa a janela, ia pegar em mais gente na rua”. 

Uma das balas deflagradas seguia na madeira da janela mesmo horas depois de a Polícia Científica, responsável pela perícia, deixar a cena do crime. O projétil cravejado na madeira estava pouco acima da altura do umbigo de um homem adulto. Diego tinha cerca de 1,60m. Ele foi atingido na altura do peito.

Um rojão e um tiro na cabeça

O assassinato à queima-roupa de Diego incendiou o Complexo do Monte Cristo. 

Em um vídeo que registra a saída do corpo do adolescente do local, é possível ouvir ao fundo uma moradora falando: “Tá todo mundo berrando lá embaixo”. 

A revolta começou já no beco onde aconteceu o crime. Isolados do local por uma fita amarela e preta, moradores denunciavam o assassinato do garoto. Virando a esquina, o chão de pedra estampava um coração branco e os dizeres “Paz”, “Deus” e “Jesus”. 

Mas ali, com a dor mantida ainda dentro dos becos do Pastuga, a cidade não saberia o que aconteceu. A favela tomou então o asfalto. Foram para a frente da pracinha da comunidade e fecharam a Rua Luiz Carlos Prestes.

A decisão de ir às ruas contra uma ação da polícia é sempre uma decisão corajosa, especialmente na periferia. Via de regra, há repressão contra moradores que manifestam sua dor. Em alguns casos, a violência policial em atos contra a própria violência policial escala a um nível letal. 

Foi assim um ano antes, naquele mesmo território. Mateus Nascimento foi morto pelo 22º Batalhão da PM aos 23 anos durante um protesto pela perda de Matheus Gabriel (19), morto pela Polícia Civil dois dias antes. A primeira morte aconteceu na Grota, a segunda na Chico Mendes — ambas comunidades localizadas no Complexo do Monte Cristo.

Dessa vez não seria diferente. A polícia respondeu aos protestos pela morte de Diego no Pasto do Gado com mais violência: bombas, tiros de borracha, agressões e ameaças a moradores e moradoras. 

“Eles estavam oprimindo até as crianças! As crianças estavam passando para ir para o projeto social, que é ali em cima, e eles estavam oprimindo: Não vai passar! Não vai passar!”

200 metros adiante, o território muda de nome. A Grota, comunidade vizinha, abriga a base do 22º Batalhão de Polícia Militar – responsável pela operação que deu fim à vida de Diego. Também houve manifestações em frente ao local. 

Entre os manifestantes estava Jonas Felipe. “Ele não era envolvido. Ele andava por aí bebendo, mas era de boa”. Natural do Rio Grande do Sul, mas morador de longa data da região, Lipe já havia visto muitos outros jovens tombarem pelas mãos da polícia. Quando soube da morte de Diego, se uniu à multidão. 

Pegou um rojão, o qual estava prestes a disparar aos céus como forma de protesto. Um tiro de fuzil foi disparado antes. “Deram um tiro e ele já caiu de cara”. Eram cerca de 9 horas da manhã, três horas após a morte de Diego.

A PM não respondeu aos questionamentos de nossa reportagem, mas disse a veículos da mídia comercial que Lipe teria reagido a uma abordagem policial. Quem vive o território afirma o contrário. “Não tinha conflito. Um vai pra lá, um vem pra cá, quer ver o que que tá acontecendo… E nessa passagem, um tiro. Tiro na cabeça”. 

Lipe perdeu muito sangue. As marcas da violência sofrida por ele tomaram conta das redes sociais quase imediatamente. Peças de roupa, uma corrente e um isqueiro azul repousavam sobre uma enorme poça vermelha na rua. Tornou-se a segunda vítima da polícia no Monte Cristo na manhã de 26 de setembro de 2025.

A morte de Lipe aconteceu cinco horas antes da publicação de uma nota conjunta das Polícias Civil e Militar sobre a operação. Mesmo assim, o óbito não consta no texto. Segundo relatos de testemunhas, houve omissão de socorro por parte dos policiais. O jovem negro de 27 anos foi levado ao hospital pela própria família. Não foi apreendida nenhuma arma com a vítima.

A Polícia Militar de Santa Catarina também optou por não se manifestar para nossa equipe sobre a morte de Diego. Segundo a nota oficial publicada pelas duas corporações, esta ocorreu no contexto da Operação Continente Seguro – que tinha como objetivo cumprir mandados referentes a um crime de roubo qualificado. De acordo com moradores, o mandado em questão não foi apresentado no local. As polícias afirmam que Diego “confrontou com a guarnição policial”, mesmo que não houvesse qualquer vestígio de disparo que não fosse do fuzil da polícia na cena do crime.

Um fio de esperança

“Tu pode me dar uma guia dessas?”

A pergunta surpreendeu Luan. 

Educador de dança no CEDEP por dois anos, o jovem negro não era a pessoa favorita de Diego – que preferia sempre as aulas de futsal. Apesar de não ser próximo do educando, desde que entrou no projeto, Luan acompanhou de perto o esforço da equipe pedagógica para mantê-lo nas atividades. 

Além da falta de proximidade e interesse pela oficina de dança, havia também uma resistência de Diego perante ao novo educador. Diego não encontrava em Luan a figura de masculinidade que conhecia como correta. O professor gay, poeta e ator, rompia com a lógica  do que o menino entendia como possibilidade de ser homem

A aproximação entre os dois veio justamente a partir do elemento central dessa pergunta surpresa: as guias. Declaradamente uma pessoa de terreiro, Luan começou a receber questionamentos de Diego sobre os fios que usava diariamente. A curiosidade chegou assim: forte e direta, como o jovem sempre foi. 

“Na época eu usava uma guia branca. E ele chegou e perguntou assim: que que é isso aí?”

Foi o primeiro contato de uma série de perguntas e conversas. A ancestralidade uniu dois jovens negros, ainda em vida. Aos 26 anos, Luan se via sentado, com o garoto de 14, partilhando sobre axé. 

Devastado pela perda da mãe, o jovem perdido escutava atentamente cada detalhe. A morte era um dos assuntos frequentes. Aos poucos, Luan explicava que, dentro do terreiro, ela não é o fim. 

“Eu comecei a falar pra ele que dentro do terreiro a gente tem uma relação diferente com as pessoas que deixam esse plano. Que pra gente, essas pessoas voltam – elas conversam com a gente, elas estão com a gente o tempo inteiro. Então eu disse: já parou pra pensar nisso? Já parou pra pensar na relação com a sua mãe?”

Quando questionado sobre poder dar uma guia, Luan ficou surpreso, mas feliz. Viu ali uma conexão que podia construir um outro caminho na vida de Diego. Com autorização e orientações de Preto Velho, foi até a casa de Diego entregar o pedido do jovem: uma guia branca, de pai Oxalá. Luan não era mais educador do projeto – que o jovem também já não frequentava regularmente. 

Junto à guia de Oxalá, Diego guardava uma guia preta – que ganhou do pai de santo de outro amigo. Chegou a frequentar, esporadicamente, um terreiro na sua comunidade. Não iniciou, oficialmente, sua vida religiosa. Mas usava as guias todos os dias, como forma de proteção.

“Talvez um desespero, uma esperança na voz, na forma que ele veio pedir. Porque pô, esse menino viu coisas que eu jamais vi, e provavelmente verei na vida, sabe? Ele teve experiências que eu, enquanto adulto, jamais vou ter. E tinha esse respeito que eu não tinha dele, por causa da sexualidade e dessa coisa da masculinidade. E mesmo assim, eu vi ele engolindo esse orgulho, sabe? Pra pedir essa ajuda. Esse fiozinho de esperança. Pra se colocar nesse lugar: professor, você pode, por favor, conseguir uma guia pra mim?”

Talvez, com mais tempo, a espiritualidade pudesse ter se tornado um sonho possível. Um novo caminho, que distanciasse o jovem das mazelas que sempre o rodearam, que lhe apresentasse outros sentidos no viver. Diego não teve esse tempo.

O que teve, em vida, foi o amor dos familiares e dos amigos, o apoio de educadores, que desejavam a ele uma vida melhor. Teve, também, a violência do Estado e a consequência de suas ausências. Cria de um território renegado pela própria cidade, a morte de Diego é sintoma de um sistema doente que interrompe sonhos – e depois, vidas. 

“É isso aí, você não pode parar

Esperar o tempo ruim vir te abraçar

Acreditar que sonhar sempre é preciso

É o que mantém os irmãos vivos”

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