Racismo estrutural permeia instituições e torna abordagens policiais variáveis de acordo com bairros da cidade
Reportagem de Gabriele Oliveira
“Existem vidas que são potencialmente matáveis. Certos corpos em certos territórios, são pessoas cuja a morte já é legitimada, a priori.”
A necropolítica é fruto do encontro do poder de Estado de produzir mortes, com a legitimação da morte de algumas populações, como explica a pesquisadora Flávia Medeiros, professora no departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Abordagens policiais variam conforme o bairro e a cor da pessoa abordada. Essa ação é resultado de uma estrutura racista que atinge, prioritariamente, homens negros em favelas e periferias de todo o país – locais marginalizados pelo poder público e inseridos no mercado ostensivo de drogas, o que, portanto, justificaria a presença ostensiva das forças de segurança.
Como consequência, os corpos negros seguem sendo o alvo preferencial em todo o pais: em 2022, 83% das vítimas de ações policiais no Brasil eram negras. Em Florianópolis, a capital mais branca do país, não é tão diferente.
O mesmo corpo
“Sempre quando a polícia me vê, me cumprimenta, o mesmo policial que lá no morro me dava enquadro e me xingava. Eu não sei se é porque não me reconhecem. Mas em um bairro nobre, eles me tratam de um jeito, e, na favela, me tratavam de outro”.
A vida de Fábio (nome fictício) é completamente diferente do que era há dois anos. Aos 19, ele estuda e trabalha, mora em um local onde se sente seguro e luta para construir o seu futuro. Apesar disso, carrega em seu corpo e na sua memória, as lembranças da violência do Estado.
Quando anda pelas ruas do bairro nobre onde mora, se lembra da infância no Morro do Horácio – os amigos, as brincadeiras, os erros cometidos, e, principalmente, as abordagens policiais. Uma delas, em especial, quase deu fim a todos os seus sonhos.
Era 10 da manhã de um dia comum. Fábio caminhava em direção ao mercadinho do bairro, quando se deparou com a polícia. Assustado, tomou a decisão que mudou o rumo da sua vida: ele correu. Quando questionado sobre o porquê, a resposta é “puro medo”.
Fábio se envolveu com o tráfico aos 16 anos, e, logo depois, foi preso. Liberado do socioeducativo, não voltou a se envolver com o crime, mas seguiu sendo intimidado pelos policiais. Quando cruzou com a PM naquela manhã, fazia três meses que estava solto.
“Pelo fato de me sentir ameaçado, né? A pessoa sofre enquadro e acha que vai apanhar. Eu corri assustado, com medo que acontecesse, como já aconteceu outras vezes, outras abordagens. Como eu sei que eu tenho passagem, eu achei que eles iam cismar, alguma coisa assim”
Apesar do estranhamento que o ato pode causar a pessoas de fora, o reflexo de correr é comum aos jovens da comunidade, que compartilham esse medo constante de apanhar da polícia. Contrariando o senso comum e a máxima “quem não deve, não teme”, os jovens correm, pois sabem que, na comunidade, todos “devem” – e quem fica, apanha.
“Não sei se é pela cor, pelo jeito que a pessoa é, se veste, não sei o preconceito que acontece entre eles, ou se todo mundo para eles é vagabundo… Mas esse receio, esse medo na verdade, não sou só eu, várias pessoas de favela sentem isso”, Fábio tenta explicar.
Naquele dia, o rapaz não conseguiu correr rápido o suficiente. Foi perseguido pelos policiais, que o alcançaram e o balearam com três tiros nas costas. Quando percebeu, já estava no chão, sangrando.
Em poucos minutos, a notícia se espalhou pela comunidade, trazendo sua família até o local onde ele estava. Fábio lembra claramente da expressão de susto que os policiais fizeram ao pegar seu documento de identidade e perceberem que era um menor de idade.
A dor física só chegou horas depois de ser alvejado, quando estava no hospital – onde ficou 14 dias internado e passou por duas cirurgias. No local, se deparou com ainda mais violência.
Na versão da Polícia Militar, o jovem portava uma pistola e atirou em três policiais da guarnição, e, por isso, foi baleado. Apesar da Polícia nunca ter provado a sua versão, sua palavra foi o suficiente para que Fábio chegasse ao hospital taxado como criminoso. Mesmo sem poder se mexer e com risco de ficar paraplégico, foi algemado na maca, sendo acompanhado diariamente por um agente penal.
A grosseria e hostilidade de alguns médicos o incomodavam. Sentia medo, tristeza, revolta. Era tratado como bandido, e, por isso, sentia que sua vida valia pouco. Não conseguia sequer se comunicar com seus familiares para pedir ajuda – seu celular, junto com sua identidade, foi apreendido pela Polícia, que nunca os devolveu.
Apesar de ser menor de idade e ter direito a um acompanhante, de acordo com o artigo 12 da Lei n° 8.069/90 (Estatuto da criança e do adolescente) – Fábio permaneceu dias isolado. A justificativa dada pelos profissionais de saúde era a pandemia de covid-19. Porém, Fábio sabia que outros pacientes recebiam visitas diárias, e se sentia prejudicado pelos cuidadores que não permitiam sequer que o jovem usasse emprestado o celular do colega de quarto para mandar notícias a seus familiares.
Sozinho e assustado após sete dias internado, Fábio chegou no limite de sua ansiedade e se recusou a fazer a cirurgia que precisava. Preso à maca, sem saber se voltaria vivo e se poderia andar novamente, Fábio, aos prantos, pedia por sua mãe. Somente neste dia, pode ser acompanhado pela sua família.
“Eu acho que fiquei mais abalado por causa disso. Aconteceu isso tudo comigo, eu achei que eu ia ficar bem no hospital, que ia me recuperar bem, não só fisicamente, mas psicologicamente também. Mas o que me abalou mais foi pensar que pessoas que eram para ajudar, me maltrataram tanto”.
Mesmo após receber alta, Fábio ainda precisou lidar com a postura preconceituosa de médicos, enfermeiros e assistentes sociais que o atenderam. Além da dificuldade para conseguir acesso à fisioterapia, ao buscar novamente o hospital sentindo fortes dores no abdômen, o médico responsável por seu caso se recusou a lhe atender, sem apresentar qualquer justificativa. “Ele me viu na fila de espera e fechou a porta, sem dizer nada”.
A violência do Estado deixou cicatrizes em seu corpo e em sua alma – foram 24 pontos nas costas e 30 no abdômen. Mesmo três anos depois, Fábio ainda tem medo de falar sobre o assunto e sofrer algum tipo de retaliação.
Depois de recuperado, no Horácio, quando cruzava com os policiais, era comum ouvir um dos agentes avisar: “esse é aí é o Fábio”. Se sentindo ameaçado e com receio de que sua presença colocasse sua família em risco, Fábio deixou a comunidade para morar em outro bairro da cidade, considerado uma área nobre. Quando cruza com a polícia neste novo local, sempre se surpreende ao ser cumprimentado com um educado “bom dia”.
“Porque aconteceu com o mesmo corpo nesse lugar, e nesse outro lugar, não? Porque as pessoas são mortas quase todos os dias nesse lugar, e no outro, não? Por que é pobre? Mas tem pessoas pobres que não fazem mal. E tem pessoas ricas que fazem mal; e temos vários exemplos que não acontece nada e a pessoa é mais bandido do que aquele cara que fica na boca vendendo droga para receber 100 reais, ou menos que isso.”
Sonhos abreviados
Seja nas periferias de Salvador, Rio de Janeiro ou Florianópolis, a morte destes jovens negros é fruto da soma de alguns fatores sociais, como a legitimidade de matar, conferida socialmente a agentes públicos, e o desejo de morte dirigido a certos grupos sociais específicos, em territórios onde Estado e políticas públicas eficazes são, quase sempre, ausentes.
Para as lideranças comunitárias, é a ausência de diálogo que segue alimentando o ciclo de violência nesses territórios – de manifestações na rua a reuniões com representantes do poder público, todas as ações em busca de soluções para o problema acabam falhas, pois batem de frente com a falta de interesse dos órgãos públicos.
A educação é uma das principais ferramentas para ampliar os horizontes de possibilidades destes jovens – e, por isso, o trabalho de organizações como a Associação de Amigos da Casa da Criança e do Adolescente do Morro do Mocotó (ACAM) é fundamental neste território, trazendo muito mais benefícios do que a presença ostensiva de policiais armados e violentos na comunidade.
A ACAM é uma organização não governamental (ONG) que atende 160 crianças e adolescentes, de 6 a 17 anos, no contraturno escolar. Fundada há 40 anos, a instituição oferece oficinas de música, percussão, dança, teatro, informática, desenho e práticas esportivas.
A pesquisadora Flávia Medeiros chama atenção para este ponto, refletindo sobre como a segurança pública é supervalorizada em Santa Catarina, se sobrepondo às demais obrigações do Estado.
“Como se divulga o maior orçamento de segurança pública da história, e não tem professor nas escolas públicas? Como que se coloca o investimento em policiais nas escolas, e fecha as escolas nas comunidades? É uma questão de orçamento – e não é tirar o orçamento da segurança pública necessariamente, mas é também entender que as outras pastas, e especialmente educação, assistência social, saúde, cultura e lazer, são tão importantes quanto.”
Além da revisão nas prioridades dos gastos públicos do Estado, Flávia também pontua questões internas das instituições de segurança pública que precisam ser revistas – como a independência e autonomia funcional na produção de verdades no trabalho das perícias.
“Os laudos periciais são comprometidos porque fazem parte da etapa da investigação que está dentro do inquérito policial. E o inquérito policial não é discutido atualmente no Brasil,enquanto uma forma pré-judicial, administrativa, que impossibilita a construção da verdade, e o reconhecimento da vítima enquanto tal”.
A imprensa também faz parte dessa equação quando reproduz visões estereotipadas sobre as periferias, tornando-as responsáveis pelas violências que assolam seus territórios. Para cessar a máquina de moer gente que é o sistema de justiça criminal e de segurança pública, é preciso compreender que a morte destes jovens nas periferias não torna a cidade mais segura.
“É fundamental uma abordagem antirracista, antifascista, de tentar superar essa lógica de desejo de morte do outro – que se faz às vezes até subjetivamente, porque significa a manutenção da minha vida. É uma generalização da ideologia de guerra normalizada no cotidiano da sociedade, e a mídia tem um papel fundamental nisso.”, explica a pesquisadora.
Para o Padre Vilson Groh, é preciso rediscutir amplamente o próprio papel dos Estados nas periferias – o que passa, necessariamente, por rediscutir o papel das polícias na sociedade. “Talvez esse seja o desafio maior, de que a polícia não está ali só para cumprir uma função, a polícia também teria que problematizar o papel, rediscutir a sua função”.
O modelo de segurança pública no Brasil está em crise, mas ainda é defendido por governos em âmbito estadual e federal, que seguem apoiando a ocupação militarizada das favelas – sob a justificativa de acabar com o tráfico. Na prática, essas ações apenas colecionam corpos de jovens negros, enquanto o tráfico continua ampliando seus poderes na sociedade.
Enquanto o Estado catarinense segue falhando em sua função social de garantir políticas estatais orçamentadas para essa população desenvolver todo o capital social que ela tem dentro de si, o que sobra para as comunidades do Maciço do Morro da Cruz são as viaturas, os fuzis e as cruzes no asfalto.
“Todo jovem assassinado é um sonho abreviado. É um sonho que não conseguiu se desenvolver, que se foi antes do tempo, trucidado por esse sistema. Não posso descartá-lo como número, como uma cifra de jornal. Há uma memória, uma família, uma história. Sonhos, vidas e sentimentos. Aquilo que tem em mim, tem nele”, desabafa o Padre Vilson Groh.