A família de Guilherme Jockyman ligou para a PM pedindo ajuda, temendo que o homem tirasse a própria vida. PM o matou 7 segundos após chegar ao local
Reportagem e fotos por Rodrigo Barbosa
Alerta de gatilho: saúde mental e suicídio
7 segundos. Este foi o tempo que, de dentro de uma viatura e à queima-roupa, a Polícia Militar de Santa Catarina levou para tirar a vida de um homem que estava armado com duas cartelas de remédio. Um mês depois, o Ministério Público quer apagar esse crime e, consigo, a história de Guilherme Jockyman.
Foi Guilherme quem trouxe os Jockyman à Ilha da Magia. Se mudaram para o Rio Vermelho no meio de 2022, em uma casa negociada pelo filho mais velho e planejada para atender as demandas de todos. O cenário aproximava a família da infância dos três filhos: Guilherme, Cássia e Arthur – em Torres, cidade do litoral norte gaúcho.
“Era bem molecagem, infância raiz. E o Guilherme era parceirão. Por mais que eu fosse mais nova, eu sempre digo que fui meio gurizinho. Ele tinha os amigos deles e eu era a penetra ali. Vai jogar um futebol? Bota a Cássia no gol! Então era assim, bem tranquilo”, conta a irmã.
Começou a acompanhar o pai no trabalho ainda aos 7 anos de idade. Desenvolveu um talento precoce com equipamentos de telecomunicação vendo Jorge, militar da Aeronáutica, instalar rádios em viaturas e caminhões. Seguiu acompanhando o pai depois da aposentadoria, quando este foi trabalhar na Rádio Maristela de Torres. Aos 13, Guilherme já assumia responsabilidades técnicas na gravação de matérias externas. Nada demais para quem, anos antes, já havia construído sua própria rádio, instalando transmissor, antena e demais equipamentos em um acampamento da Igreja Adventista ao qual foi com sua fiel escudeira, Cássia.
Nice, a mãe, lembra, entretanto, que era difícil arrancar um sorriso do filho. A primeira gargalhada veio com quase um ano de idade. Na maioria das centenas de fotos que a família guarda da infância e adolescência dos filhos, é difícil ver o pequeno Guilherme sorrindo. Mais tarde, os pais perceberiam que aquilo era um sinal do que foram descobrir anos depois: o filho convivia com a depressão desde muito jovem. Já na fase adulta, Guilherme foi diagnosticado com autismo. Havia ainda a suspeita que ele sofresse de dislexia.
Fora momentos de crise, se tornou uma pessoa ativa e sorridente na vida adulta – muito por ter criado consciência de suas condições e ter recebido tratamento psicológico. É assim, sorrindo, que ele aparece nas imagens das camisas que o homenagearam após seu assassinato.
A habilidade com telecomunicações fez com que a família pensasse que Guilherme seguiria carreira na Engenharia. Mas ele encontrou uma nova paixão. Ainda hoje, cerca de 15 apostilas do curso de Economia da Uniasselvi repousam na estante de seu quarto. Das mais de três dezenas de livros que seguem na mesma estante, a maioria também fala sobre investimentos.
Guilherme não finalizou a faculdade, mas trabalhou na área pela qual se encantou. Durante a pandemia, ainda em Torres, era funcionário do Banrisul. Gerente de contas, trabalhava diretamente no atendimento ao público. Também nesta época, ganhou sua filha – hoje, com 5 anos de idade.
Pouco antes da mudança da família para Florianópolis, Guilherme se mudou para São Paulo, para trabalhar no banco Itaú. Porém, não se adaptou às metas do banco comercial: “Poxa, tô vendo que essa pessoa tem só 30 pila na conta. Tu sabe que ela não tem outro dinheiro e eles querem que eu tire esse dinheiro dela”. Por não concordar em prejudicar seus clientes, foi delatado por colegas de trabalho.
Guilherme entrou em crise. Seis meses após sua chegada à capital paulista, retornou a Floripa. Chegou a voltar para São Paulo devido a um relacionamento – morou em Bauru por um ano. Com o término, seu quadro clínico agravou-se e ele voltou a viver com a família.
Porém, a falta de acesso à saúde em Florianópolis o desmotivava – em especial, a qualidade do tratamento oferecido no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade, localizado no Itacorubi, a cerca de 25 quilômetros de distância da casa dos Jockyman.
“Se nós estamos hoje aqui é porque o CAPS, o serviço de assistência psicossocial, falhou. E falhou muito”.
Segundo a família, a postura agressiva do psiquiatra que atendia Guilherme fazia o filho voltar pior a cada nova visita ao local. A última aconteceu em agosto, quando o profissional em questão deixou o CAPS, não sendo substituído até a morte de Guilherme. Ele também encontrava dificuldades para ser atendido no posto de saúde de seu bairro, que, como vários outros da cidade, apresenta muitas filas.
Neste contexto, foram poucos os vizinhos que chegaram a realmente conhecer Guilherme no Rio Vermelho. Nice era uma das poucas pessoas que tinha acesso diário ao filho – que, adoecido, quase não saía do quarto. “Eu levava comida pra ele, a gente conversava, eu conversava muito com ele. Ele desabafava muito.”
O primeiro chamado
A família não se recorda a data exata, mas foi há cerca de um ano. Guilherme teve uma crise depressiva e trancou-se no quarto. Quando a chave da porta girou, a família pensou no pior. E ligou para a polícia.
Dois policiais chegaram ao local e, educadamente, segundo a família, entraram na casa. “Quando veio esse pessoal aqui, tentaram conversar, entraram aqui e conversaram”. Bateram na porta e chamaram por Guilherme.
“Vamos conversar”, disse um deles.
“Vocês estão em quantos aí?”, perguntou Guilherme.
“Nós estamos em dois”.
“Então conversem entre vocês, eu não quero falar”.
Guilherme acabou saindo do quarto depois, conversou respeitosamente com os policiais e a vida seguiu normalmente. A família, hoje, relembra o episódio com um misto de graça e dor. A resposta de Guilherme estampa a face descontraída daquele homem, mas o episódio como um todo remete ao que aconteceria cerca de um ano depois.
“Quando a gente chamou agora, a gente pensou que ia ter o mesmo tratamento”…
A última crise
“Mãe, a partir de amanhã tudo vai mudar. As coisas vão mudar”. A mensagem enviada por Guilherme a Nice no dia 15 de outubro de 2024 fez despertar na mãe o sentimento de que algo muito bom aconteceria. Guilherme faria 31 anos no dia seguinte.
A dor vivida desde o dia 17 faz com que a família pouco fale do aniversário em si. As lembranças mais vivas os levam às 4 horas da manhã do dia seguinte: “Começou com uma crise de pânico, né? Às 5 foi a hora que ele saiu, e a gente saiu atrás”. Guilherme ameaçava se matar quando saiu de casa com duas cartelas de Clonazepam e uma garrafa d’água. A medicação era uma das três às quais ele tinha receita.
Segundo a família, ele não tomava os remédios há alguns dias, o que pode ter desencadeado a crise. Em vídeos de câmeras de segurança, é possível ver que Guilherme andava rapidamente olhando para o chão. Seis minutos depois, Cássia arranca o carro. “Se ele entra nesse mato fechado tomando toda aquela medicação, ele ia morrer! Então a gente foi atrás, seguindo ele para poder dizer para a ambulância onde ele estava”, lembra Nice, que a acompanhava. Jorge ficou no portão de casa, caso o filho voltasse. Dali, observou o caminho do filho, que foi até a Rua Cândido Pereira dos Anjos, que dá acesso à servidão, e virou à direita.
Guilherme foi captado por uma câmera caminhando na direção contrária, em sentido à sua casa, cerca de meia hora depois. Nesse meio tempo, Arthur, seu irmão, também havia chegado ao local.
Guilherme não tinha nada nas mãos e caminhava num ritmo mais lento. Olha para trás, em direção à esquina da servidão, e segue caminhando. Chega à altura de sua casa e anda de um lado para outro, sem entrar. Volta a caminhar em direção ao começo da rua, gesticula algo e retorna mais uma vez. Desta vez, entra no portão de casa.
Sai 15 segundos depois, carregando um objeto semelhante a uma pedra e segue mais uma vez ao começo da rua, passando por pessoas que caminhavam naquele começo de manhã – sem fazer qualquer tipo de ameaça. Volta cerca de 10 minutos depois, sem nada nas mãos. A esta altura, não havia ambulâncias ou viaturas no local. Pai e filho ficam, então, conversando encostados em uma caminhonete preta que estava na rua.
Cerca de cinco minutos depois, já perto das 06h, chega a ambulância do SAMU e para bem ao lado dos dois. “Eu tava conversando com ele, eu fiz um gesto, eles entenderam e recuaram. Tava conversando com ele. Já tava passando”, lembra Jorge. A ambulância saiu de ré menos de 20 segundos depois de chegar. Pai e filho continuam a conversar: “Vamos entrar, meu filho. Vamos tomar um café”.
Na esquina, Cássia e Nice retornam e encontram a ambulância. “Ele precisava de ajuda, ele precisava da família, ele precisava de tratamento. E foi isso que a gente pediu. A gente chamou a ambulância, a gente chamou a SAMU, e infelizmente, a gente chamou a polícia pra ajudar, pra que o Guilherme fosse levado para um hospital. Porque inicialmente nós achamos que ele tinha tomado duas caixas de Clonazepam”, lembra a mãe.
Enquanto Guilherme se acalmava junto a seu pai, mãe e irmã, a pedido da própria equipe do SAMU, chamaram a polícia, confiando que Guilherme teria o mesmo tratamento da abordagem policial de um ano antes.
O crime
Eram quase seis da manhã quando uma Tracker branca com número 6302 cantava pneus pela Rua Cândido Pereira dos Anjos, uma das principais do Rio Vermelho. Cássia e Nice veem e escutam a viatura do 21º Batalhão de Polícia Militar (21BPM), responsável pelo patrulhamento do Norte da Ilha, se aproximando em alta velocidade.
Cássia manobrava seu carro quando viu a viatura parando por poucos segundos ao lado da ambulância. A mãe desceu para conversar com os policiais na esquina. Mas foi rápido demais. Quando Nice desceu do carro, PM e SAMU já partiam servidão adentro.
Pelos vídeos da manhã do crime, é possível ver que a polícia levou 10 segundos para percorrer os últimos 100 metros até a casa dos Jockyman. “Quando a polícia chegou, sem dó nem piedade, sem saber quem era, sem saber porquê, simplesmente atropelou o meu filho”, relata Jorge. Guilherme, de mãos vazias, fica parado com a chegada da viatura, não fazendo qualquer tipo de movimento brusco. Não é possível ver o momento exato do atropelamento nos vídeos, pois a viatura se posiciona entre a câmera e Guilherme, que sai cambaleando em direção ao pai.
7 segundos depois e a poucos centímetros do pai, o filho tomba de maneira definitiva. O vídeo que captou a cena não tem áudio, mas o relato de testemunhas e uma segunda câmera que captou parte do áudio dos momentos finais de Guilherme dão o som daquele crime. Quase em simultâneo ao atropelamento, os policiais teriam gritado: “Bota as mãos na cabeça! Deita no chão e bota as mãos na cabeça!”, como lembra o pai. Ainda se recuperando da queda e em surto, Guilherme se recusa a obedecer à ordem, mas não faz qualquer tipo de movimento em direção à viatura. Pelo contrário, ele caminha lentamente para trás.
“Quando eu olho pro motorista, ele já tá apontando para o meu filho de dentro da viatura, sem descer”, lembra Jorge. “Vem! Vem! Corre! Pelo amor de Deus, corre”, implorou o pai. Por cima do retrovisor do veículo, sem sequer abrir a porta, um dos três policiais da guarnição dá dois tiros fatais no peito de Guilherme.
A porta do carona se abre. “Um deles chegou na frente, saiu pela outra porta, deu um golpe na carabina e saltou um cartucho que ele podia ter alvejado mais gente. Pior de tudo: aquele cartucho que caiu no chão, de cor amarela, era uma arma não letal. Por que que aquele infeliz não usou isso?”, indaga Jorge. Enquanto seu filho sangrava, baleado no chão, o pai teve que implorar que o SAMU, que estava a poucos metros atrás da viatura, atendesse Guilherme.
“Eu tava no início da rua. Quando eu ouvi os tiros, eu corri muito, porque eu sabia que alguma coisa muito ruim tinha acontecido com o meu filho”, lembra Nice. De origem pobre, já convivia há muito tempo com a dor da perda de um irmão, assassinado quando tinha apenas 14 anos de idade. Nas câmeras de segurança, é possível vê-la chegando com as mãos na cabeça pouco menos de um minuto depois do crime.
Segundo ela, ao perguntar quem havia feito aquilo com seu filho, recebeu a resposta de imediato: “Fui eu, dei dois tiros no teu filho”. Cássia chegaria, também correndo, um minuto mais tarde. “Tava no olho dele. Tipo ‘Eu fiz, fui eu’”.
Quando perguntaram o porquê, tudo o que ouviram foram: “Vocês querem o que? Isso aqui é Rio Vermelho” e “A culpa é de vocês que não cuidaram”. Nice se desespera e grita: “Vocês mataram o meu filho!”
Apenas Jorge viu o assassinato em si, mas os fatos que sucederam a morte de Guilherme foram presenciados por um número maior de pessoas. Os barulhos do atropelamento e dos tiros chamaram a atenção da vizinhança que, até então, sequer sabia o que se passava na casa dos Jockyman.
“Ninguém tá parado às 6 horas da manhã na frente de casa olhando o que tá acontecendo na vizinhança, né? Principalmente porque não tinha barulho, o Guilherme não tava gritando no meio da rua. Ele caminhava para um lado e para o outro, falava com o pai. Mas ele falava, ele não gritava. Então, não foi uma coisa que chamou atenção dos vizinhos a ponto de eles acordarem”, lembra a irmã. A dinâmica mostrada pelas câmeras de segurança da rua corrobora a versão dela.
“Foi uma série de agressões. Sem ser a própria morte, a agressividade deles com a gente, né? Eles apontaram arma para mim”, reclama Cássia. A irmã ainda teria que ouvir dos policiais, quando abordada no portão de casa, que “aqui é Santa Catarina, a gente trabalha certo”. A cena foi gravada em vídeo pelos próprios policiais e divulgada no mesmo dia pelo “jornal” Razão, em publicação que exalta o crime cometido pelos agentes.
Testemunhas relatam que, entre as várias violências e intimidações pelas quais a família passou nos momentos seguintes à morte de Guilherme, Nice foi empurrada contra esta mesma caminhonete. Uma vizinha também teria sido empurrada por, segundo os policiais, “já ter visto demais”.
Ainda há denúncias de que o corpo de Guilherme teria sido movido antes da chegada da Polícia Civil e de que os policiais da viatura 6302 teriam dito a testemunhas estarem, àquela altura, a 36 horas seguidas trabalhando. Depois dos tiros, ao menos três novas viaturas chegaram ao local num intervalo de vinte minutos. A Polícia Militar instalou clima de exceção em uma pacata servidão do Rio Vermelho.
A corporação não se manifestou sobre os fatos denunciados por esta reportagem. Alegando “questões de investigação”, a PM limitou-se a responder a apenas uma das oito perguntas encaminhadas. Indagado sobre ter um protocolo para atender pessoas que necessitam de apoio psicológico, como Guilherme, o Major Ricardo Silva de Sousa, Subchefe do Centro de Comunicação Social da PMSC, disse que a corporação tem um setor específico de psicologia, assistência social e religiosa destinado a policiais militares.
A dor que não morre com a morte
A morte de Guilherme foi, pelo levantamento realizado pelo Desterro, a primeira decorrente de uma ação policial desde que a Polícia Militar de Santa Catarina resolveu extinguir o sistema de câmeras corporais, que estava vigente desde 2019, alegando que este não atingiu os objetivos esperados. No caso de Guilherme, como a viatura 6302 do 21BPM atendia a um chamado específico (feito pela própria família, inclusive), o equipamento teoricamente estaria ligado se o sistema ainda estivesse em vigência.
“Eu não sei se era com o celular [que estava filmando], não estava visível”, lembra Cássia. Sem a câmera no fardamento, houve ainda mais seletividade por parte da PM em relação às imagens que produziram no dia do crime. Sinal do que a família teria que enfrentar a partir dali.
A maior parte dos veículos de imprensa relatou que Guilherme portava duas facas. Há inclusive um relato de Jorge ao Cidade Alerta onde, após um corte na imagem, este diz que o filho de fato portava uma faca. Esta fala, entretanto, referia-se ao começo do surto quando, dentro de casa, Guilherme ameaçou se matar com o objeto – que não foi levado por ele para a rua e permanece na casa dos Jockyman até hoje. A família não reconhece as duas facas apresentadas pela polícia como supostamente portadas por Guilherme no dia de sua execução.
Nos vídeos posteriores ao crime aos quais a reportagem teve acesso, não é possível ver qualquer tipo de arma branca ao seu redor. Segundo a família, um membro da equipe de perícia esteve presente no local e disse ter encontrado apenas as duas cartelas de Clonazepam com a vítima.
Existiram também relatos na mídia – esta, via de regra baseada na polícia – de que Guilherme teria tentado jogar pedras e/ou um tijolo contra os policiais. A afirmação não apenas não encontra amparo na imagem da chegada da viatura, como a última vez que Guilherme é visto com algo que pode ser interpretado como uma pedra ou tijolo é de pelo menos quinze minutos antes da primeira chegada do SAMU e mais de meia hora antes da chegada da polícia. É possível afirmar, pela dinâmica dos vídeos, que o objeto foi deixado longe da casa de Guilherme, onde o crime aconteceu.
As denúncias de família e comunidade foram reunidas no dia 2 de novembro na praça do Rio Vermelho. O Dia de Finados foi escolhido para que uma manifestação pedindo justiça por Guilherme acontecesse. “A gente não queria estar aqui. A gente queria que o Guilherme estivesse com a gente…”, iniciou Nice.
Com protagonismo da família e de movimentos sociais, com destaque para o Salve o Rio Vermelho e o Movimento Bem Viver, vários dos fatos narrados por esta reportagem foram ditos em alto e bom som. A polícia não esteve presente no ato, que carregava consigo um clima de tensão.
A irmã de Guilherme foi intimada a depor na Corregedoria da PM dois dias depois da manifestação. O pai, Jorge, testemunha ocular do crime, também foi chamado a depor uma vez. Os familiares relataram o ocorrido e foram informados pela Corregedoria que os policiais investigados teriam acesso imediato a todo o conteúdo, incluindo dados de cunho pessoal. O contrário não se aplica. Até hoje, a família não sabe sequer o nome do agente que tirou a vida de Guilherme.
A condução do processo pelo Estado ainda interferiu na falta de coleta de outros testemunhos fundamentais para a elucidação do caso. Outros moradores se recusaram a relatar as violência que viram, ouviram e sofreram na manhã do crime pois, assim como a família, teriam suas informações compartilhadas com a corporação, não sendo garantido qualquer tipo de anonimato. Dessa forma, a estrutura e a postura do Estado dificultaram com que o próprio Estado pudesse investigar a morte de Guilherme.
Durante o processo investigativo, a família também viu pessoalmente as duas facas supostamente utilizadas por Guilherme no dia em que morreu. Segundo eles, os objetos teriam chegado à Polícia Civil ao menos três dias depois. “É uma faca que tá inclusive afiada. Ela foi amolada, tu vê que a faca tá toda raspada. E uma delas o rapaz ainda olhou e disse: ‘Ah, essa faca aqui é aquelas facas do cupom de selo do Bistek. A minha esposa tem’. Não tem nem Bistek por aqui”, lembra a família, que, até o momento do fechamento da reportagem, ainda não tinha tido acesso ao laudo da morte de Guilherme.
Quarenta e três dias após a morte, um documento com timbre do Ministério Público de Santa Catarina se tornaria um novo capítulo da história.
“Os Policiais Militares que estavam realizando a incursão agiram sob a excludente de ilicitude (legítima defesa), o que torna suas ações lícitas e, em consequência, não se verifica a existência de qualquer infração penal, sendo o arquivamento do presente inquérito policial medida que se impõe”, conclui o promotor Jonnathan Augustus Kuhnen, em documento de 29 de novembro. A recomendação era de que o caso fosse arquivado.
O pedido de arquivamento tem como base a dinâmica relatada pela polícia, na qual Guilherme estaria portando um tijolo no momento da chegada da viatura e que teria se aproximado da mesma com duas facas. Não apenas há acontecimentos questionáveis relatados no documento, como este apresenta os dois tiros letais como solução válida para a dinâmica apresentada, sem mencionar quaisquer dispositivos que regem sobre uso progressivo da força, por exemplo.
Mesmo que a dinâmica relatada pela PM fosse verdadeira e Guilherme estivesse armado com facas, poderiam haver outras medidas para controlar a situação. Além da carabina com munição não letal relatada por Jorge, existem outros dispositivos nas forças de segurança, como tasers e cacetetes, que também têm como objetivo dotar o agente público de ferramentas para que o uso progressivo e proporcional da força seja aplicado. Recuar a viatura e fechar os vidros laterais da viatura, por exemplo, também poderiam ser medidas para afastar a suposta agressão com facas. Naquela manhã, conforme testemunho do próprio pai, a PM veio para “a solução final” em 7 segundos.
O arquivamento e o argumento de legítima defesa foram contestados judicialmente pela defesa da família Jockyman – esta, se recusa a se mudar da casa escolhida pelo filho mais velho para viverem, mesmo que convivam com a memória de seu corpo estirado na frente do portão todos os dias:
“As últimas lembranças que eu tenho do meu filho é dentro dessa casa. Não tem como eu sair daqui, ir embora daqui”. Em meio à luta por justiça, preparam o quarto de Guilherme para que este vire um espaço de memória à vida do filho amado.