Três jovens foram espancados pela polícia enquanto instalavam lonas em casas de moradores atingidos pelas chuvas; crianças, mulheres e pessoa com deficiência foram atingidos por spray de pimenta
Reportagem por Rodrigo Barbosa
Esta reportagem contém relatos de moradores vítimas de violência policial. Para sua própria proteção, nomes foram omitidos. Ainda assim, não há garantias de que estas pessoas estão seguras. Declaro publicamente minha preocupação com a integridade física e mental das pessoas envolvidas no processo de apuração, que temem retaliação de agentes de segurança pública.
A água não parava de cair. O dia 16 de janeiro de 2025 foi marcado por um dos maiores volumes de chuva da história recente de Florianópolis. A partir do meio da tarde, as principais vias da cidade tornaram-se intransitáveis, carros foram levados pela correnteza e o caos tomou conta. A prefeitura decretou estado de emergência.
Na periferia, a situação era especialmente delicada. Nas íngremes comunidades da região central, verdadeiras cachoeiras desciam morro abaixo, tornando o trânsito de pessoas praticamente impossível. Muros e barrancos deslizaram, telhados voaram com o vento e pessoas ficaram desalojadas ou em situação de perigo iminente. Nos becos do Maciço do Morro da Cruz, ninguém dormiu em paz de quinta para sexta.
No dia seguinte, o começo da reconstrução. No Instagram do prefeito, Topázio Neto dava a entender que o Maciço do Morro da Cruz, que agrupa as comunidades da região central, seria prioridade. Publicou vídeos nas ruas principais do Morro da Penitenciária, Serrinha e Monte Serrat.
Ao caminhar para além destas vias, entretanto, a ausência do Poder Público era quase completa. Como de costume, caberia às próprias comunidades reerguerem as casas de seus irmãos. Era o que acontecia desde a manhã no Morro do Horácio. Ali, o Estado se faria presente da maneira que se faz quase todos os dias: através da violência.
Solidariedade no Campinho
Localizado à esquerda da parte mais baixa da comunidade, o campo de futebol é um dos pontos de encontro do Morro do Horácio. Sendo uma das áreas mais abertas da região, o campo recebe, para além de partidas de futebol, crias que querem soltar pipa, famílias que querem se encontrar para tomar uma cerveja e uma série de eventos culturais da comunidade.
Centenas de pessoas também moram ao redor. Atrás do campinho, uma tábua de madeira liga a rua principal a famílias que se estabeleceram em uma área próxima à mata. Por ali, o chão é de terra e as casas são feitas de madeira, sendo esta uma das regiões menos estruturadas do Horácio. Quando a tempestade chegou, na quinta-feira, poucos foram os telhados dos moradores desta região que ficaram no lugar. Vários outros destelhamentos ocorreram pelo morro, que também sofreu com a queda de árvores e diversos deslizamentos.
Lideranças do Horácio se mobilizaram na manhã de sexta para mapear as demandas dos moradores. Havia previsão de novas chuvas para o fim de semana, o que fez com que a arrecadação e distribuição de lonas fosse uma das principais emergências. Ainda pela manhã, jovens do Campinho subiram morro acima para buscar as lonas que diminuiriam o prejuízo dos moradores da região durante os próximos dias.
Uma vez que o material chegou no Campinho, cada morador ganhou uma função. “Os moradores aqui se reuniram para um ajudar o outro”, lembra um vizinho. Três jovens adultos foram escalados para fixar as lonas telhado acima. Além da experiência na construção civil, os três são magros, o que diminuiria o risco de acidentes.
O trabalho comunitário que começou pela manhã avançou pelo começo da tarde. Pelo ritmo intenso, as lonas estariam no lugar até o fim do dia, mesmo com a ausência do Poder Público. O morro é quem cuida do morro.
Eis que, por volta das 14h30, o Estado chegou ao local. Mas, ao invés de ajudar na reconstrução do Campinho, este agrediria seus moradores.
Rotina
Cinco viaturas – duas marrons, três brancas – desceram um Horácio em reconstrução pela Servidão Assis Antunes de Matos, uma das vielas mais largas da comunidade, até o Campinho. Os policiais desceram das viaturas e, armados, caminharam firmemente até as casinhas de madeira. Chegaram informando aos moradores que estavam ali para fazer um patrulhamento de rotina.
“Se fosse abordagem de rotina, eu tinha ido para o paredão também porque eu tava ali junto botando as lonas”, contesta um morador. Segundo testemunhas, os policiais foram diretamente para a abordagem dos três jovens que trabalhavam em cima dos telhados.
As abordagens, entretanto, não trataram-se de simples revistas. Os jovens não seriam liberados após os policiais constatarem que eles não portavam nada de ilegal. Pelo contrário, a violência foi intensificada. “Tu desce, entra pra dentro com a tua família que eu não quero nenhuma criança na rua, eu não quero ninguém na rua”.
Os três jovens, abordados com violência numa mesma casa, seriam levados ao interior de uma segunda casa. Ao chegarem nesta casa, os policiais teriam mandado os moradores se retirarem. “Mandaram ela se retirar e ela não quis se retirar. Ela tava com as crianças, ela tem uma menininha que tava com fome. Como é que ela vai se retirar da casa dela? Aí eles começaram a gritar ali que era pra todo mundo sair daqui porque eles queriam levar os meninos lá para cima, para o mato. Aí a galera se revoltou, porque não acharam os meninos com nada. E a gente começou a gritar”, conta uma testemunha.
A resposta dos agentes foi spray de pimenta. Vídeos feitos pela comunidade durante a presença da polícia no morro mostram pelo menos uma dezena de crianças sendo atendidas por mães. É possível ver bebês de colo vomitando e vários moradores tossindo e chorando. Uma pessoa com deficiência auditiva também foi vítima, além de idosos. Segundo relatos, uma mulher que deu à luz há um mês foi fisicamente agredida – sofreu um empurrão de um policial – e quase caiu escada abaixo.
Mesmo feridos, vários moradores seguiram ao redor da área. A multidão relata que ouvia, ao fundo, os gritos dos jovens dentro da casa. Foram cerca de duas horas de agressões. Policiais teriam desferido socos, pontapés e pauladas nas vítimas, que estavam algemadas. Além disso, estas relatam que também sofreram tortura psicológica.
“Ele pegava o fuzil, vinha e botava na minha nuca assim, falava que ia atirar. Falavam que ia matar”.
Imagens gravadas no interior da residência após a saída dos agentes escancaram a violência: há poças vermelhas pelo chão de toda a casa. Sangue da boca de um jovem negro. Este, ainda relata que teve o celular quebrado após se recusar fornecer a senha do mesmo a seus agressores. Em seguida, o celular quebrado foi colocado dentro da geladeira. Um quarto desta casa aparece completamente bagunçado no vídeo em questão.
O interior da casa onde ocorreram as agressões. Imagens feitas por moradores
Este jovem seria, então, levado à área de mata que fica acima das casas. No mato, foi novamente agredido, saindo dali com a mão “quase quebrada”. Ali, também relata ter sido obrigado a gravar um vídeo dizendo que os policiais nada haviam feito com ele. Os outros dois jovens seguiam no interior da casa neste momento.
A saída dos jovens do local foi filmada por moradores. Após cerca de duas horas dentro da casa invadida, ao menos oito policiais aparecem cruzando a tábua de madeira que dá acesso ao local. Dois agentes vêm à frente da equipe portando fuzis. O terceiro policial traz consigo um jovem imobilizado e algemado. Vestindo camisa do Flamengo, bermuda e chinelo, ele foi um dos dois jovens que permaneceram o tempo inteiro no interior da casa.
Ao fundo do vídeo, vários moradores se revoltam contra a ação dos policiais. “Ele tava ajudando! Ele tava ajudando a arrumar o telhado dos moradores, que caiu!”.
O jovem em questão trabalha na construção civil desde que migrou para o regime aberto, após cumprir pena por tráfico de drogas. Ele, que atualmente está nos últimos meses do regime, foi liberado pela Polícia Civil ao assinar um papel assim que chegou à Delegacia. Nada devia.
“Graças a Deus hoje a gente trabalha, né? Eu sou independente, eu trabalho, não tô mais na vida errada”.
Segundo testemunhas, a nova rotina do jovem, longe do tráfico, já havia sido informada aos policiais desde o começo da abordagem. “Não interessa se trabalha ou não trabalha, a gente não tá aqui pra saber quem trabalha”, teria dito um dos agentes. Agressões verbais também foram proferidas durante todo o episódio: “Chamaram uma senhorinha ali de vagabunda”, conta uma vizinha.
A saída de um segundo jovem também foi captada em vídeo. Este vem mancando pela tábua de madeira sendo amparado por uma criança. É possível ver que sua mão está ferida. Era o jovem que havia sido levado à área de mata. Ele e a terceira vítima foram liberados pela polícia após as agressões.
A saída da polícia do morro. Imagens feitas por moradores
A esta altura, seguia a revolta dos moradores. Após levarem o primeiro jovem algemado, policiais formaram uma barreira entre suas viaturas e a população do Campinho – esta, acredita que nada de mais grave aconteceu aos jovens porque houve fiscalização da comunidade. A sensação de medo e o anseio por proteger os crias do Horácio não é sem motivo: apenas no ano anterior, ao menos quatro moradores das comunidades da Agronômica foram mortos em ações policiais.
Questionada pelo Desterro, a Polícia Militar de Santa Catarina não se manifestou sobre as denúncias apresentadas nesta reportagem.