Blocos de rua se unem contra a privatização do Carnaval

Entenda os principais pontos do edital que quer leiloar o Carnaval de Floripa e seus impactos para a cultura popular da cidade

Reportagem de Gabriele Oliveira e Rodrigo Barbosa

Um rufo à ancestralidade e um grito contra a elitização. Em 21 de janeiro, os Blocos de Carnaval de Florianópolis se reuniram no Centro para mostrar a potência da cultura popular da Ilha da Magia. 

O Grande Ato do Carnaval de Rua de Florianópolis foi uma resposta a um edital publicado pela Prefeitura no último dia do ano passado, sem consulta prévia aos principais agentes da festa. 

A Prefeitura adiou o diálogo. Aceitou sentar-se para conversar com os Blocos apenas a cinco dias do Leilão. Enquanto isso, Topázio Neto, prefeito de Florianópolis, usou a internet para mentir – acusando os críticos do Leilão de serem “uma turma que adora espalhar notícia falsa com maldade“.

A data do leilão é 11 de fevereiro. Nossa cultura popular está à venda e o martelo bate em quatro dias.

O leilão

Em 31 de dezembro de 2024, a Prefeitura de Florianópolis publicou um edital que apresentava o leilão do Carnaval de Rua da cidade para os três anos seguintes. O documento prevê a cessão, para uma mesma empresa, do espaço de 12 arenas de Norte a Sul da Ilha – Centro, Continente, Campeche, Tapera, Pântano do Sul, Lagoa da Conceição, Barra da Lagoa, Ingleses, Sambaqui, Ponta das Canas, Canasvieiras e Santo Antônio de Lisboa. 

A empresa vencedora do leilão se torna responsável pela estrutura (palcos, banheiros, ambulâncias, etc) e pessoal (artistas, seguranças, equipe de limpeza) dos espaços. Segundo a prefeitura, o modelo apresentado permitiria “alcançar diferentes comunidades, tornando o Carnaval um evento democrático e acessível, fortalecendo o sentimento de pertencimento e estimulando a participação local”. Nos territórios, a percepção foi radicalmente oposta.

A gente é contra a venda do espaço público. A gente quer fazer festa, manter a tradição”, diz Edson Roldan. Mestre Edinho é fundador do Africatarina, Bloco Afro que anima as ruas de Floripa e valoriza a cultura preta de nosso território há mais de vinte anos. Desde o começo do ano, é um dos vários representantes da cena cultural da cidade que teme pela continuidade do caráter popular do Carnaval.

O Africatarina, de Mestre Edinho (camisa vermelha), existe desde 2001 e oferece oficinas abertas à comunidade. Foto: Rodrigo Barbosa

Uma das principais preocupações de quem é contra a privatização diz respeito ao raio de 1km ao redor das arenas, determinado inicialmente pelo Poder Público como sendo área de fiscalização. Neste raio, estaria proibida a presença de marcas concorrentes à marca vencedora do leilão. Como muito provavelmente esta será uma empresa de bebidas, a medida gerou receio sobre a realização de uma série de eventos populares ao redor da arena principal. 

Existem vários blocos que recebem patrocínio de marcas, locais inclusive, e existe uma dúvida se esses blocos poderiam acontecer neste raio de um quilômetro, considerando que o edital afirma que não pode acontecer concorrência”, denuncia a vereadora Carla Ayres. 

Se tomarmos como referência a Arena do Centro, localizada no Largo da Alfândega, são vários os locais de importância cultural que ficariam dentro do raio de um quilômetro. 

A Praça XV de Novembro fica a cerca de 300 metros dali e recebe o Desfile dos Blocos Afro, que compreende os blocos Africatarina, Arrasta Ilha, Baque Mulher e Cores de Aidê. O Bloco dos Sujos, que recebeu cerca de 400 mil pessoas em 2024, também acontece no local. 

Historicamente a gente sofre. Tudo que se refere a cultura negra estar na rua, ocupar as ruas, quer fazer reivindicação e trazer cultura, existe uma repressão contra isso. Pra mim não soa como uma novidade. Já aconteceu, em outros anos, de ocuparem parte da Praça XV e a gente não conseguir fazer o nosso desfile, que é de suma importância ser nesse lugar”, aponta Dandara Manoela, mulher negra integrante do Bloco Cores de Aidê e uma das artistas mais proeminentes de Santa Catarina.

Blocos e grupos musicais também costumam ocupar a Escadaria do Rosário, reduto da cultura negra da cidade, que fica a 350 metros da futura arena da Alfândega. A Avenida Hercílio Luz, outro ponto tradicional do Carnaval em Florianópolis, recebe uma série de eventos LGBTQIAP+, e fica a meio quilômetro do local. 

Em linhas gerais, a empresa que comprar o direito de estampar sua marca na Arena do Centro, pela proposta inicial da Prefeitura, compraria o direito de influenciar na dinâmica, na programação e na economia de todo o Centro. O espaço público, assim, se torna privado. O mesmo tende a se repetir nos demais bairros. Atualmente, o raio de um quilômetro é motivo de negociação entre Município e Blocos, após reunião realizada com a Secretaria de Turismo ontem, 6 de fevereiro.

Lucro na certa

O leilão do Carnaval de Floripa prevê a criação de camarotes e áreas VIP nas arenas privatizadas, cerceando o acesso gratuito do povo a espaços essencialmente públicos. O edital não determina uma área máxima das arenas que podem ser ocupadas por estes camarotes, o que levanta preocupação de um cerceamento ainda maior. Desta forma, além de cercear toda a região ao redor da Arena, o próprio acesso à Arena pode ficar condicionado a condições financeiras – transformando o Carnaval, uma festa popular, em um ambiente elitista e inacessível. 

Opositores do leilão pontuam que o Berbigão da Boca, bloco carnavalesco que cobrava ingressos até o ano passado, foi obrigado pelo Ministério Público a garantir o livre acesso da população a partir de 2025. O MP alegou que a prática anterior violava o direito ao livre acesso a manifestações culturais, garantido no artigo 215 da Constituição.

A determinação dos camarotes, bem como a possibilidade de que a empresa vencedora do leilão venda novos espaços publicitários nas arenas, são parte do pacote de medidas que fazem a Prefeitura garantir à empresa que o retorno do investimento de mais de R$6 milhões se dará ainda no Carnaval de 2026, mesmo nas projeções mais conservadoras. Lucro garantido. Para a Prefeitura, estão garantidos R$200 mil por ano vindos da empresa vencedora, valor que é considerado baixo pela oposição.

A Arena Central ocupará todo o espaço do Largo da Alfândega. Imagem: Prefeitura de Florianópolis

A comercialização de produtos dentro das arenas terá controle da marca vencedora. Os vendedores do local serão credenciados pela Prefeitura. Ambulantes que ficarem de fora do credenciamento podem ter problemas para comercializar dentro do já mencionado raio de fiscalização em volta das arenas. Há ainda questionamentos sobre a possibilidade ou não de que os próprios foliões levem suas bebidas – seja dentro das arenas, seja fora. 

Recentemente, Zena Becker, Secretária de Turismo, já adiantou que a estrutura das ruas do Centro terão como modelo o Carnaval de 2023, onde foram instalados gradis e pontos de controle de acesso pelas vias públicas da região – reforçando o caráter de privatização e o cerceamento do direito ao lazer adotados pelo governo municipal.

A resistência

Pra que a gente possa ter um ato potente, antes de tudo, a gente vai fazer um rufo bem grande pra ancestralidade que nos precede. E convocar essa ancestralidade para que ela possa fazer com que a rua seja do povo”, anunciou Alexandra Alencar, representante do Baque Mulher Floripa e responsável por uma das falas iniciais da manifestação.

A resposta da cultura popular à privatização do Carnaval veio através de festa. Centenas de pessoas se reuniram em frente à Prefeitura em 21 de janeiro munidos de tambores, estandartes e seus próprios corpos e vozes. Batuque na alegria, batuque na luta. Foram mais de duas horas de cortejo pelas ruas do Centro. 

É uma falta de respeito com todos os nossos ancestrais, que lutaram para dar uma qualidade de entretenimento para as comunidades. É o pouco que a gente tem pra nossa comunidade, eles fazem todo custo pra querer nos tirar. É ridículo, a privatização do carnaval de rua é um retrocesso para a sociedade, sendo que é um marco histórico, que gera renda pra própria ilha”, relata Ana Lemos, moradora do Morro do Tico-Tico e artista integrante do bloco Baque Mulher Floripa.

Uma semana antes da manifestação, em 13 de janeiro, Blocos de Rua e mandatos parlamentares enviaram um ofício às Secretarias de Cultura e Turismo, questionando uma série d pontos do leilão. Foi publicada uma nova versão do documento minutos antes de o Grande Ato tomar as ruas. Este, entretanto, não resolveu a maior parte dos problemas apontados.

Os ofícios em questão até hoje não foram respondidos. Quando questionada pelo Desterro, a Prefeitura afirmou que respondeu os ofícios enviados, o que é negado por quem os enviou. Também houve recusa por parte do Município a dialogar diretamente com o grupo formado por mais de 30 Blocos de Rua por quase um mês.

Dentre as mudanças entre as duas versões do edital, uma delas é a retirada da permissão de a empresa vencedora participar de ações de publicidade envolvendo os Blocos de Rua. Isto, entretanto, não quer dizer que estes agora estejam com sua folia garantida. A confusão jurídica que se tornou o Carnaval 2025 ganharia um novo episódio em 24 de janeiro, três dias após o ato. 

Nesta data, foi publicado o Edital de Chamamento de Patrocínio para os Blocos de Carnaval, destinado a garantir estrutura material para a realização dos blocos – como banheiros químicos e caixas de som. O processo, que acontece anualmente, sofreu mudanças e se tornou ainda mais burocrático.

O primeiro ponto que preocupa é como os Blocos são definidos no documento: “eventos”. No Edital do Leilão, “eventos” estão entre os itens listados como sendo de influência do raio de fiscalização das arenas. Ou seja, os Blocos seguiram submetidos às restrições impostas pela privatização – sobretudo se não houver diminuição do raio de influência.

Outra alteração muito criticada foi a obrigatoriedade de os Blocos estamparem a marca da Prefeitura de Florianópolis em toda e qualquer peça de divulgação do evento, incluindo peças de vestuário. Publicado a menos de um mês da efetiva realização do Carnaval, o Chamamento ignora que a maioria dos grupos de carnaval da cidade já produziram seus materiais para 2025. Em caso de descumprimento, haveria previsão de ressarcimento integral à Prefeitura dos valores da estrutura cedida. 

O intervalo de tempo, aliás, é algo que pode impedir a realização de blocos. O documento publicado pela Prefeitura prevê antecedência de 30 dias para protocolar o pedido de autorização de cada evento. Há blocos marcados para o dia 21 de fevereiro, a menos de trinta dias depois da publicação do Edital de Patrocínio – que também está sendo discutido por Município e Blocos após a reunião entre as partes.

Em 30 de janeiro, uma denúncia foi formalizada no Ministério Público de Santa Catarina. De autoria dos vereadores Carla Ayres, Leonel Camasão e Ingrid Sateré-Mawé, parlamentares que têm mantido diálogo próximo e levado as demandas dos blocos populares às esferas públicas, o documento denuncia que é praticamente inviável os Blocos irem às ruas com todas as regras listadas.

O grupo de Blocos de Rua, que conquistou seu espaço de diálogo com o Município após um mês de luta, espera respostas oficiais sobre as demandas discutidas na noite de 6 de fevereiro No instagram da Prefeitura, centenas de comentários cobram posicionamento e comunicação. 

Ao Desterro, a Prefeitura pontuou que “A organização do Carnaval tem como premissa a escuta e a busca pelo equilíbrio entre os diversas partes, garantindo que a festa aconteça de forma segura, acessível e organizada para toda a população. Reafirmamos o compromisso da Prefeitura de Florianópolis com a realização de um Carnaval inclusivo, culturalmente rico e seguro para todos.”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Veja mais

Papo reto

O Papo Reto é nosso boletim informativo diretamente no seu Whatsapp.

Ele traz um resumo da nossa última notícia de forma rápida e direta para você se manter informado. Você pode escolher receber o resumo em áudio, vídeo ou texto.

Disponível a partir de janeiro de 2025.



Apoie o Desterro

Jornalismo independente e antirracista nas favelas de Floripa

Apoie o Desterro

Jornalismo independente e antirracista nas favelas de Floripa