Contando com 68 participantes, o evento reuniu famílias na luta pelo direito à justiça, memória e reparação. Ato no centro de Floripa marca criação de Grupo de Mães de Vítimas na cidade.
Reportagem de Gabriele Oliveira, em parceria com o Instituto Marielle Franco
Companheira me ajude, que eu não posso andar só. Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor.
Entre os dias 14 e 16 de maio de 2024, ocorreu o 8º Encontro Nacional de Mães e Familiares de Vitimas de Terrorismo do Estado, em Florianópolis. O evento contou com a participação de 68 pessoas de diversos estados do Brasil.
O encontro é articulado pela Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas de Terrosimo do Estado, iniciativa criada em 2016 e que reúne mães e familiares que perderam entes queridos devido à letalidade policial no Brasil. Juntas, estas familias se unem para lutar por direitos, justiça, reparação e memória das vítimas da violência estatal – em sua maioria, jovens negros, pobres e periféricos.
Anualmente, a Rede realiza encontros para fortalecer a luta da organização. Nesta oitava edição, o coletivo chegou, pela primeira vez, ao sul do Brasil – demarcando que a violência do Estado também se mostra presente neste território.
“Esse encontro traz uma outra perspectiva, vira uma chave. Tanto pra quem veio, quanto pra quem é daqui. Ter vários familiares, de vários estados, discutindo essas pautas, é um marco. É mostrar que tem violência do estado aqui sim, que as pessoas são assassinadas sim”, explica Patrícia Oliveira, familiar de um sobrevivente da chacina da Candelária, no Rio de Janeiro, em 1993, integrante da Rede e da coordenação do Encontro Nacional.
Além dos familiares de todo o Brasil que já integram a rede, o Encontro também recebeu mães locais, que partilharam suas histórias de luta, denunciando a invisibilidade da violência policial na capital catarinense. Entre elas, estava dona Cida, que, aos 55 anos, ouviu seu filho ser assassinado dentro de casa.
Em 24 de janeiro de 2025, José Romualdo foi morto pela polícia com oito tiros, às cinco e meia da manhã, dentro do seu quarto. O jovem negro de 20 anos, conhecido como Lolinha, estava parado em pé em frente ao seu guarda roupa quando foi executado. Cida dormia no quarto ao lado. Desde então, a família busca justiça diante de um sistema que silencia suas periferias, propagando uma imagem de segurança que somente o asfalto conhece.
“Mesmo em um estado de pessoas brancas, tem pessoas negras que estão morrendo. E muitas vezes estas pessoas brancas não enxergam isso”, complementa Patrícia.
Para Marinete Silva, que participou de edições do encontro em Goiânia e na Bahia, a realização do evento em Florianópolis também tem um caráter especial. Mãe de Marielle Franco, vereadora negra assassinada em 2018 no Rio de Janeiro, junto a seu motorista e amigo Anderson, Marinete pontua que, apesar de ser um estado majoritariamente branco, a mesma política de produção de mortes de jovens negros, denunciada por sua filha no Rio de Janeiro, se encontra nas favelas da capital catarinense.
“Não é direcionado, não é pontual. É algo que acontece em vários contextos, e aqui não é diferente. A periferia sofre os mesmos massacres e preconceitos que a gente encontra em outros lugares. Então marcar este território hoje, com um encontro desses, é fundamental. Para que essas pessoas saibam, também, que não é diferente.”
Nos últimos oito anos, entre 2016 e 2024, quase 40% das vítimas em operações militares em Florianópolis são homens negros – em uma cidade onde, conforme dados da PNAD 2022, apenas 22% da população se autodeclara negra. Mais de 83% dessas vítimas eram crianças ou jovens com idades entre 12 e 29 anos.
“Mesmo tendo pessoas brancas, é o negro que está na ponta. É o homem negro que sofre – de 14 a 49 anos são os mais abatidos, os corpos mais encontrados, em todo território nacional. E aqui não é diferente”, pontua Marinete.
Em homenagem a Dona Mary
Além do reforço à luta, o encontro deste ano teve caráter de homenagem. Na sétima edição, realizada no ano passado, em Pernambuco, o grupo de familiares perdeu um de seus membros, recém conquistado.
Maria, conhecida como dona Mary, cometeu suicídio no dia 15 de maio de 2024. Mãe de Bryan, de 22 anos, estava adoecida desde a perda do filho, sequestrado e morto pelo Estado – cujo corpo, ela mesmo encontrou.
“O filho dela foi sequestrado. Ela acionou a polícia, bombeiros, todo mundo, e nada foi feito. Então ela saiu à procura do filho dela. Passou dias entrando na mata. Ela teve um sonho, em que o filho dela dizia onde ele tava. Ela foi até lá, e encontrou ele. Morto”, conta Joelma Andrade, integrante da Rede.
Natural de Recife, Joelma foi uma das responsáveis pela organização local da sétima edição do Encontro Nacional, realizado em Pernambuco. Foi ela quem teve contato com a história de dona Maria e a convidou para participar das atividades.
Com horário e trajeto já combinado com dona Mary no dia anterior, Joelma acordou cedo no dia 15 e entrou em contato novamente, estranhando a falta de resposta dela. Quando chegou ao local do Encontro, soube que ela não resistiu à dor da perda. Depois de meses de luto, dona Maria não conseguiu aguentar mais um dia.
“Ela disse pra mim assim: Joelma, a dor mata a gente por dentro. E realmente mata. A dor que ela estava sentindo, da falta do filho, é que matou ela por dentro. Morre um pedaço enorme da gente com nossos filhos. E eu disse: saiba que a senhora não está só, a senhora tem a mim. A gente vai caminhar e lutar por justiça pelo seu filho”.
Em luto, o coletivo cancelou a caminhada programada para o dia seguinte, que encerraria a programação do Encontro do ano passado. Juntas, mães de diversos estados foram para o enterro de dona Maria, dizer adeus para uma das suas. Apesar de muitas ali não terem tido a oportunidade de conhecer dona Maria de perto, no coração de todas, elas já se conheciam. A dor de uma mãe, é a dor de todas.
Joelma também esteve presente na despedida de dona Maria, carregando no coração o peso de sentir que não chegou a tempo. Aproximar esta mãe em luto do grupo era, para Joelma, a chance de oferecer o mesmo acolhimento e apoio que recebeu quando perdeu seu filho, Mário de Andrade – executado pela Polícia Militar de Recife em 25 de julho de 2016, aos 14 anos, enquanto andava de bicicleta.
“Eu estava tão feliz que eu ia salvar uma mãe. Mas infelizmente eu não consegui chegar a tempo, para salvar dessa dor, para salvar desse sistema que quer nos matar. Infelizmente é isso, o sistema é pra nos matar. Me emociono porque a dor dela é a minha.
Meu filho foi morto com duas coronhadas e três tiros. E a única arma dele foi uma bicicleta. Quando Mário foi exterminado – porque não foi assassinato não, foi extermínio – meu mundo acabou. Eu tive que me manter de pé pelas minhas filhas”.
Ao lado da cama de dona Mary, as roupas e os brincos escolhidos para usar no Encontro nunca foram utilizados. Um ano depois, familiares presentes no evento relembram e celebram a vida e a luta de dona Maria, que lutou por Bryan com todas as suas forças.
Apesar do peso da dor, a Rede segue firme em suas articulações, visando alcançar mães em todo o país. Para elas, a união se torna a base. Transformando o luto em luta, elas se acolhem, se apoiam e se consolam. Na partilha de lágrimas, risadas e abraços, mulheres de todo o país unem forças para reivindicar justiça contra um Estado que arrancou filhos, irmãos, companheiros e familiares de seus braços.
Um Estado condenado
“Quantos mais vão chorar a morte do filho? Quantas irmãs irão sentir a perda do irmão?” Mac Laine Neves, familiar de vítima da Chacina em Nova Brasília (1994 e 1995)
Uma das mesas de discussão realizadas pelo Encontro trouxe para o coletivo uma importante discussão: a internacionalização de denúncias, tendo como ponto de partida casos que estão em tramitação ou já foram julgados na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – instituição judiciária autônoma composta por juristas de diferentes nacionalidades que atuam na defesa do respeito pleno aos direitos humanos.
Um destes casos é a Chacina de Nova Brasília, no Complexo do Alemão (RJ). Nos anos de 1994 e 1995, 26 pessoas foram executadas e três mulheres, incluindo duas adolescentes, sofreram violência sexual por parte de agentes policiais.
Em 2015, as denúncias de violações de direitos humanos chegaram à CIDH por meio de uma ação do Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) e do Iser (Instituto de Estudos da Religião), que estiveram no Encontro. Diante das falhas e omissões, resultando na impunidade dos crimes, em 2017, a Corte condenou o Estado brasileiro e determinou que fossem conduzidas investigações adequadas sobre os homicídios.
O principal objetivo da Corte Interamericana de Direitos Humanos é a aplicação e a interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O Brasil assina o documento da Convenção. Diante disso, uma condenação da CIDH é de extrema gravidade, pois significa que o país não está cumprindo com os acordos estabelecidos pela Convenção. Uma sentença da Corte IDH é o atestado de uma democracia falha – denúncia esta já realizada por inúmeras mães e familiares de vítimas do Estado brasileiro.
Ainda assim, muitas das recomendações da sentença da Corte IDH seguem sendo ignoradas – como a implementação de medidas de reparação para as vítimas e seus familiares, como assistência médica e psicológica gratuita.
Mesmo com a indicação da Corte para criação de normativas e práticas de investigação autônoma e independente de crimes cometidos por agentes de Estado, em 2021, cinco policiais foram absolvidos pelo Tribunal do Júri depois de serem julgados pelos homicídios qualificados de 13 pessoas na Nova Brasília, em 1994.
30 anos após as chacinas, familiares das vítimas de Nova Brasília continuam na luta por justiça, Resistem a uma estrutura de violência do Estado que é impulsionada pela cumplicidade de diversos órgãos, entre eles a polícia, o Ministério Público e o Judiciário.
A violência e barbaridade deste Estado racista não se limita somente às execuções realizadas por policiais. O sequestro é também uma estratégia recorrente de agentes de segurança pública. Foi assim no caso do desaparecimento forçado de 11 jovens moradores da favela de Acari, na zona norte do Rio de Janeiro, em 1990, retirados de um sítio por um grupo de homens encapuzados. O caso, também condenado pela Corte IDH, deu origem ao grupo de ativistas Mães de Acari, presente no Encontro Nacional deste ano.
Os sequestradores eram policiais e integrantes dos “Cavalos Corredores”, um grupo de extermínio que operava na Favela de Acari. Dos 11 desaparecidos, oito eram adolescentes com idades entre 13 e 18 anos. Até hoje, a maioria das famílias não conseguiu emitir as certidões de óbito das vítimas.
A crueldade não se encerrou no desaparecimento. Em 1993, após testemunhar sobre a participação policial nos crimes, a líder do grupo “Mães de Acari” e mãe de uma das vítimas, Luiz Henrique da Silva Euzebio, e sua sobrinha, Sheila da Conceição, foram assassinadas na Estação de Metrô da Praça 11, na cidade do Rio de Janeiro.
8º Encontro Nacional de Mães e Familiares de Vitimas de Terrorismo do Estado, em Florianópolis. Fotos: Rodrigo Barbosa e Warley Alvarenga
Apesar das dores e dos processos de revitimização gerados pelo Estado, familiares das chacinas de Acari e Nova Brasilia seguem sendo resistência – juntas a outras 150 familiares que integram a Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas de Terrorismo do Estado.
Além da realização do encontro anual, integrantes da Rede se reuniram em outro momento deste ano – o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como ADPF das Favelas, na qual foi amicus curiae. O processo tem como objetivo limitar operações policiais em favelas do Rio de Janeiro e estabelecer protocolos para reduzir a letalidade policial no país.
Diversas medidas propostas pela ADPF 635 são semelhantes às sentenças condenatórias da Corte IDH nos casos Nova Brasília e Acari, como a criação de protocolos específicos para operações em áreas densamente povoadas, como as favelas, e a promoção de investigações independentes, visando evitar a interferência de agentes de segurança pública nos processo judiciais em que o Estado é o agressor.
“A gente é muito persistente. E eu aprendi isso com Vera e Marilene, que eram duas mães de Acari. Que mesmo doentes, com vários problemas de saúde, nunca desistiram de encontrar seus filhos, iam pra todos os lugares. Às vezes não tinham nem comida em casa, mas estavam no dia a dia da luta, iam pra manifestação, iam para ato, ia pra cemitério para escavar. A gente é muito insistente e persistente. Por isso que a gente continuou, e por isso que eu também continuo, a cada dia”, Patrícia Oliveira, integrante da Rede.
O controle externo que não existe
“O MP é a PM com outra ordem as letras. É o assassino de caneta” Solange Oliveira, do Movimento Mães em Luto da Zona Leste SP
O Ministério Público deveria agir com um advogado da sociedade – ele existe para defender a ordem jurídica e o regime democrático, garantindo a justiça e o respeito à lei. Dentre suas funções constitucionais, está o controle externo da atividade policial, conforme o artigo 129, inciso VII, da Constituição Federal.
Na teoria, cabe ao MP fiscalizar e verificar se as ações policiais estão dentro dos limites legais e se respeitam os direitos dos cidadãos. O órgão pode solicitar informações, inspecionar procedimentos policiais e, em alguns casos, até mesmo abrir investigação criminal.
Na prática, a realidade é outra: quando se trata do controle externo da PM, o MP se mostra completamente ausente. A falta de compromisso do Ministério Público na investigação dos assassinatos cometidos pela polícia, bem como a ausência de protocolos e o mau atendimento oferecido às famílias das vítimas é um problema recorrente em todo o Brasil.
Em Santa Catarina, não é diferente. Um exemplo desta atuação é o caso de Guilherme Jockyman, morto pela Polícia Militar de Santa Catarina em 17 de outubro de 2024. O jovem, que estava em surto, foi atropelado por uma viatura do 21º Batalhão da PMSC, que chegou para acompanhar a ambulância do SAMU que havia sido solicitada pela família, que temia que Guilherme tirasse a própria vida.
Após o atropelamento, sem sequer sair do veículo, um dos três policiais da guarnição disparou duas vezes no peito de Guilherme. Ele foi morto na frente de seu pai, 7 segundos após a polícia chegar no local.
Apenas quarenta e três dias após a morte, o Ministério Público de Santa Catarina recomendou o arquivamento do caso, alegando que os policiais agiram “sob a excludente de ilicitude (legítima defesa), o que torna suas ações lícitas e, em consequência, não se verifica a existência de qualquer infração penal”.
A versão da polícia, que relata Guilherme como um sujeito agressivo que estaria portando um tijolo e duas facas no momento da chegada da viatura, é desmentida por diversas testemunhas e por imagens de vídeo. Mas, para o Ministério Público, a voz da mão armada do Estado é sempre mais forte.
Para a família, sobra dor, lembranças, e culpa, enquanto contestam judicialmente a ação do MP. “Eu me sinto culpada, porque eu chamei o SAMU. Fui eu quem chamei”, lamenta Cleonice Jockyman, mãe de Guilherme.
Desinvestir para investir
“Qual é a presença do estado nas periferias? Como ele se faz presente? Na ponta do fuzil” Patrícia Herman, da Rede Nenhuma Vida a Menos
Quando o controle externo não funciona, a população cria suas próprias estratégias de combate. Isto é o que chamamos de controle popular – ou Incidência Política Popular. Uma série de ações realizadas por organizações da sociedade civil e movimentos sociais, que buscam influenciar a formulação de políticas públicas e ações sociais.
Reinvindicar o desinvestimento da Segurança Pública é uma das principais estratégias de ativistas contra o terrorismo do Estado. A ideia é reduzir os recursos financeiros destinados à Segurança Pública, reorientando esses recursos para outras prioridades, como Saúde, Cultura e Educação. Em resumo, tirar o dinheiro de quem mata e destiná-lo para quem cuida da vida.
Durante o Encontro Nacional deste ano, organizações de diferentes estados apresentaram estudos realizados sobre o tema do desinvestimento das polícias. Um deles foi o Dossiê Orçamentário, produzido pela Rede Abolicionista, coletivo criado pela Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial – organização que atua com ações de enfrentamento à violência de Estado.
“Nosso objetivo é retirar investimento no arsenal armamentista das polícias e redirecionar esse gasto público para políticas de assistência social, cultural, habitação e educação para favelas e periferias. Para nós, o desinvestimento das polícias é um importante dispositivo de controle da atuação policial e uma forma de impedir a adesão de novas tecnologias de produção de morte que apenas resultam na continuidade do genocídio e no encarceramento da população negra”.
A primeira edição do Dossiê Orçamentário analisou o perfil legislativo dos parlamentos, as proposições legislativas sobre tecnologia e policiamento, e o orçamento público das políticas de Segurança Pública no Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo
Nestes três estados, juntos, entre 2023 e março de 2025, foram mais de 3200 propostas legislativas sobre Segurança Pública. A maior parte delas trata de temas como militarização nas escolas, aumento de benefícios sociais e gratificações para as polícias, expansão de novas unidades de policiamento nos municípios e do policiamento ostensivo, maior financiamento para setores policiais, aumento de arsenal bélico e a implementação de novas tecnologias de controle e vigilância.
Mais dinheiro, mais salário, mais postos policiais e mais armas. Mais força para matar. No Rio de Janeiro, por exemplo, o orçamento de Segurança Pública é maior que pastas inteiras como Educação, Saúde, Trabalho e Habitação.
No Espírito Santo, a pasta de Segurança Pública utiliza 9,1% do total do orçamento público do Estado, sendo maior que os gastos com Assistência Social, Cultura, Trabalho e Urbanismo somados. Em São Paulo, as pastas de Direitos Humanos, Assistência Social, Cultura e Habitação juntas, não chegam aos 20 bilhões de reais destinados à Segurança Pública.
“A prioridade do Governo no orçamento público é a execução e expansão de uma política de morte através do aumento da militarização da vida e o investimento em armamentos bélicos.”
Fonte: Dossiê Orçamentário da Rede Abolicionista
O alto investimento em Segurança Pública, em contraste com o abandono de outras pastas, não é exclusivo de estados do Sudeste. No Paraná, Segurança Pública representa 9% do orçamento total do Estado para 2025 – sendo maior do que 14 pastas juntas.
A pesquisa Desinveste Já, realizada pela Rede Nenhuma Vida a Menos, de Curitiba e região, aponta que, do orçamento de R$ 7 bilhões reservados para Segurança Pública, mais de R$ 3,2 bilhões são destinados a policiamento. O valor é três vezes maior do que os R$ 953 milhões destinados às Unidades Básicas de Saúde, principal porta de acesso ao Sistema Único de Saúde.
Os efeitos concretos da supervalorização de uma pasta orçamentária em relação às outras ficam ainda mais visíveis quando exemplificamos como o dinheiro poderia ter sido investido de melhor forma. A Rede Nenhuma a Vida a Menos mostrou que o valor utilizado para a compra de 10 fuzis (R$ 280 mil cada) poderia pagar o salário de 57 professores durante um ano letivo. Mais de 13.000 parcelas do Bolsa Família poderiam ser pagas com os recursos utilizados para compra de 1 helicóptero – que custa 8 milhões de reais.
“Desinvestir das polícias é investir em políticas sociais de saúde, educação e moradia. Desinvestir das policias é investir na vida do povo negro”
Fonte: Pesquisa Desinveste Já, da Rede Nenhuma Vida A Menos
Floripa no centro da Luta
“Santa Catarina tem polícia assassina!
Em maio de 2020, Florianópolis amanheceu com 12 cruzes fincadas no canteiro central da rua Silva Jardim, na entrada do Morro do Mocotó. Em cada cruz, moradores escreveram a data da morte, nome e idade dos jovens mortos pela polícia, em ações realizadas na comunidade.
A escolha das cruzes foi simbólica – utilizada na época para sinalizar as mortes por covid-19, ali foram colocadas para mostrar que, na periferia, a PM já havia matado mais que o vírus. A retaliação chegou no mesmo dia: durante a madrugada, a polícia disparou rajadas de tiros em direção ao Morro do Mocotó, chegando a atingir um cachorro.
Quatro anos depois, no dia 16 de maio de 2024, as cruzes voltaram para o asfalto para denunciar a continuidade da violência da polícia nas favelas da cidade. Cerca de 150 pessoas se reuniram em frente à Catedral Metropolitana de Florianópolis, em um ato que integrou a programação do 8º Encontro Nacional de Mães e Familiares de Vítimas de Terrorismo do Estado.
Cruzes que homenageavam as vítimas da polícia de Florianópolis. Fotos: Rodrigo Barbosa e Warley Alvarenga
Em frente a um dos pontos turísticos mais conhecidos da famosa “Ilha da Magia”, 18 cruzes denunciavam a perda de 23 jovens mortos pela Polícia Militar de Santa Catarina. Todos em supostos conflitos armados – um extermínio de corpos negros justificado por ações de combate e guerra às drogas que, nem de longe, combate a megaestrutura das indústrias de armas e drogas.
“A polícia foi feita para matar. A polícia não foi feita para proteger o cidadão brasileiro. A polícia foi feita para encarcerar os nossos filhos, que estão dentro da comunidade. Pretos, pobres, favelados. Nós somos os alvos, sempre. O meu algoz é o estado brasileiro. O meu algoz é a Polícia Militar. Unam-se a nós, porque amanhã pode ser o filho de vocês”, denunciou Aline Leite, familiar de vítima da Chacina de Acari, durante o ato.
De todos os 23 casos sinalizados pelas cruzes no asfalto, somente um levou ao indiciamento dos policiais. Trata-se de Vitor Xavier, jovem negro morto em abril de 2019, após ser baleado quatro vezes por policiais militares. Vitor atirava em latinhas com uma arma de pressão, no pátio de sua casa. O policial militar Guilherme Palhano, que retirou a arma de pressão da cena do crime, responde por fraude processual e homicídio qualificado.
A denúncia pública realizada pelas famílias demarca que, em Santa Catarina, assim como em todo o Brasil, a atual política de segurança pública tem como alvo a juventude periférica e, em sua maioria, negra – como 18 dos jovens mortos pela PMSC, homenageados nas cruzes.
Ato em homenagem às vítimas do Estado reuniu familiares de todo o Brasil no centro de Florianópolis. Fotos: Warley Alvarenga
Além de encerrar a programação do 8º Encontro Nacional de Mães e Familiares de Vítimas de Terrorismo do Estado, o ato realizado no centro da cidade também marca a criação do Grupo de Mães e Familiares de Vitimas do Estado em Florianopolis.
Criado para fortalecer famílias da capital mais branca do país, o grupo, assim como a própria rede nacional de mães e familiares, é composto majoritariamente por mulheres – em sua maioria, negras e periféricas. São mães, irmãs e tias que, além da perda de seus entes, também encaram diariamente o mito de viverem em uma cidade modelo.
“É muito bom estar com essas mulheres, isso nos fortalece. É um momento de reivindicar o seu direito enquanto mãe de vítima de violência, mas você também consegue se aquilombar neste processo, no estar com essas mães. Transformando o luto em uma luta constante. É dizer também que a gente vai continuar essa luta. A dor é imensurável. É uma dor que não tem nome, não tem como. Tem dor que tem nome, a nossa não tem” – Marinete Silva.
Em memória de Shilaver (22), Vitor Xavier (19), Marlon (15), Leonardo (18), Everton (21), Lucas (20), Jonathan (24), Naninho (12), Nathan (17), Dutrem (17), Taynan (20), Walace (21), Gustavo (17), Mãozinha (38), Valter (27), Rafael (40), Gabriel (22), Vitor Rafael (16), Guilherme (31), Pablo (19), Lolinha (20), Tininho (15) e Murruga (24).
Se você é mãe ou familiar de vítima de violência em Florianópolis e deseja integrar o Grupo Local, entre em contato com o Desterro pelo número 48 9654-4350.